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Entrevista por Patrícia Domingues
Direção criativa Jorge Silva Riveiro e Sara Peixoto
Fotografia por Frederico Martins
Styling por Larissa Marinho
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Diz-se que os melhores atores são, inevitavelmente, as melhores companhias, e quando estamos na presença de Albano Jerónimo há qualquer coisa que se acende e que fica connosco no caminho para casa. A sua habilidade de imaginar o que os outros sentem orbita entre palcos há duas décadas, mas o que o torna excecional é que não é só pela suposição que se move e sim pela disponibilidade para se colocar de verdade no papel dos objetos incompletos que interpreta, com todas as ansiedades e dúvidas e quedas feias que isso acarreta, mas também com uma grandiosa generosidade que extrapola para os outros e, tão ou mais importante, para si. É sobre talento - não nos deixemos entusiasmar -, mas de que lhe/nos valeria sem amor para lamber as feridas?
S: A minha perspetiva é que atravessas um bocado várias gerações. Porque tanto a minha mãe sabe quem tu és, como eu, como as minhas amigas e amigos mais novos. És quase uma figura transversal, com uma identidade muito própria. Consegues tocar em várias pessoas de públicos diferentes. Sentes isso também?
AJ: Sim, e gostava de sentir mais. Acho que é importantíssimo esse contacto transversal porque é uma forma de não cristalizares. Na minha companhia, a teatro nacional 21, nós trabalhamos sempre com gente nova, abrimos sempre castings e tentamos incluir gente nova, porque é uma vez mais uma forma de não te tornares um fóssil de ti próprio. E dentro dessa lógica, ter a sorte de pertencer a algo transversal a várias idades é uma forma de chegar a mais pessoas, que é o que eu quero fazer através do meu trabalho.
S: E de certa forma de o fazer à tua maneira. Vou falar de exemplos que me são próximos, por exemplo no mundo do jornalismo. Quando surgiram os sites em Portugal, ou os blogs, houve muitas influências e uma certa rivalidade – até há um texto muito conhecido da Suzy Menkes em que ridiculariza as bloggers e as influencers nas semanas de moda – então há sempre uma certa, como aconteceu sempre em todas as gerações passadas, uma espécie de resistência. É uma coisa em que tu pensas? Ou que tens que pensar? Ou é uma coisa que te acompanha naturalmente, ou seja, mesmo a tua participação no IG ou a parceria com algumas marcas que fazem fit contigo, é uma coisa a que sentes que às vezes resistes?
AJ: Questiono-me sempre. Porque acho que tenho que me questionar sempre, em várias perspetivas. Porque eu gosto de estar a par das coisas, mas também gosto de ocupar um espaço com sentido. Ou seja, vou sabendo o que é que aquilo me pode potenciar, o que é eu posso tirar daquilo, o que é que eu posso oferecer. Gosto de saber o lugar que ocupo, não só no IG como na minha profissão, como num filme, como num elenco de uma peça de teatro. É fundamental saberes o lugar que tu ocupas e para isso é preciso conheceres. E então questiono-me sempre e já é uma luta permanente, seja nas decisões que tomo profissionalmente (faço um filme, faço uma novela, uma peça, o que seja) ou mesmo num tipo de post ou tipo de parcerias que estabeleço, questiono-me sempre. E acho que é uma matriz para tudo.
S: Esse lugar que tu ocupas também tem sido notado. Não és a mesma pessoa de há 22 anos atrás, quando começaste. Quais é que dirias que seriam para ti os teus pilares, a tua base? Aquilo com que, independentemente de todas as oscilações, és tu enquanto profissional e ser humano.
AJ: As bases para mim passam sempre por primeiro que tudo, pessoalmente, viver. Viver tudo aquilo que implica não trabalho. Porque é necessário, senão não consigo ser ator, não consigo produzir o material artístico para seja o que for. Passa por aí. Depois são as pessoas. Eu gosto muito de pessoas, acredito nas pessoas, o meu trabalho é sobre pessoas. Então tenho que as perceber e acho que nós para falarmos de pessoas, temos que conhecer pessoas. E depois há também um lado de curiosidade latente de me rever no outro. No outro entenda-se o estrangeiro. Aquilo que eu desconheço. E depois obviamente estar atento àquilo que está à minha volta e o amor que tenho por aquilo que faço. Acho que são estes os pilares que me sustentam. Eu estou nesse modo permanente de escuta porque eu acho que é através da escuta que eu consigo mudar. Porque, no fundo, o que pode resumir isto tudo é a mudança. A palavra mudança. O meu trabalho reside nesta palavra que engloba isto tudo que te disse. A mudança para mim é crescimento, é educação, é onde tu podes parar a narrativa da tua vida, do teu trabalho, e construíres outra. Mudança e o erro também é outro pilar daquilo que eu faço. Porque acredito que a vida, agora lá está relacionado com o IG, estamos repletos de vidas perfeitas, cenários perfeitos ou idílicos ou ideais, o que seja. E aquilo que eu faço é exatamente o reverso. É mostrar o oposto. E eu acho que o erro, para mim, é das coisas mais belas que a vida nos pode dar porque são oportunidades de crescimento, de construção. São estes os pilares em que eu me baseio para tudo.
S: Aliás, a tua masterclass é sobre isso. Podias dar uma masterclass sobre qualquer tema, mas escolheste precisamente esse. O que é que tu tentas passar às pessoas que frequentam essa masterclass? Ou porque é que escolheste exatamente esse tema?
AJ: As pessoas são belas no erro, na falha. Quando estão destruídas as pessoas são belas e não estou a fazer uma apologia a construir sobre a dor, ou de romantizar isso, o que eu estou a dizer é que, ao contrário daquilo que a sociedade nos pede, de seres o melhor em tudo, de comprar o melhor carro, de teres a melhor performance, a melhor fotografia, melhor cena, eu prefiro ir pelo oposto. É exatamente dar o contratempo daquilo que os dias nos marcam e o erro, existir nesse erro, é de facto a diferença. Posso dar-te um exemplo muito concreto. O Otis Redding fez o Sittin’ On The Dock Of The Bay, que foi uma música de um anúncio… A parte final do assobio, isso nasceu de um erro. Eles estavam em estúdio e o Otis estava a gravar e não tinham tempo de estúdio então disse “vou só trautear a música até ao final” e foi o que ele fez, ele trauteou a música até ao fim. E o produtor no dia a seguir ouviu a música e acho que a música estava incrível. O Otis disse “a música não está acabada”, mas o produtor achou que estava ótima. É um exemplo básico de como é que o erro pode ser uma descoberta e o que eu tento passar às pessoas é que não escondam esse erro, porque é a isso que nos obrigam. E é trazer à superfície o erro e celebrá-lo. Aproveitá-lo e transformá-lo em coisas que comuniquem, nem que seja por defeito. Na minha vida, eu venho de um meio pobre, de uma vila muito pobre onde as condições eram muito precárias, escassas. Então fui obrigado desde muito cedo a transformar as contrariedades em algo de construção, em algo de produtivo, em algo otimista. Desde muito cedo que estou habituado a esse código. E isso colocou-me numa zona de aproveitar o que é menos interessante ou menos bom que a vida tem. E tirar sempre partido de alguma coisa.
S: Houve alguém que te tenha ensinado isso ou ajudado a perceber isso?
AJ: A minha mãe e os meus irmãos sempre foram um exemplo de luta permanente contra as condições da vida. No fundo é terem a capacidade de se reinventar, no meio (desculpa o vernáculo) da merda. E como é que tu te podes reerguer em momentos dramáticos, trágicos, duros, dolorosos. Acredito muito na vida assim porque, ao fim do dia, o que é que pode fazer a distinção entre algo feito por mim ou algo feito por outro ator? É exatamente a minha história, a minha cultura, a minha educação, a forma como eu vejo as coisas, o mundo, as pessoas. E acho que isto me completa, ou pelo menos preenche-me. Se não me torna uma pessoa mais interessante, sem dúvida que me torna uma pessoa mais interessada pela vida.
S: Nunca foi motivo de sentimento de injustiça? Sempre tiveste essa clareza?
AJ: Há um momento de esclarecimento, ou de entendimento, que esses sentimentos não são interessantes. De revolta, de inveja até, ou de injustiça. Não há tempo para isso. Não há tempo, nem tenho tempo da vida, para sentir isso. A forma que eu tenho de combater isso é, como sempre, através do trabalho. Robert De Niro tem uma expressão muito engraçada. Perguntaram-lhe depois de Taxi Driver o que é que ele ia fazer depois desse filme e ele responde: “então, agora vou fazer outro filme”. É tão simples como isto. E depois juntando também esta perspetiva de que não há tempo. Não há tempo da nossa vida para perdermos com esses sentimentos que não são interessantes. Levando ao limite, quase como a esperança. A esperança é uma coisa que para mim é um presente envenenado, uma espécie de horizonte que tu nunca tocas. Eu gosto de ser muito pragmático. Vamos para o terreno, vamos trabalhar, vamos fazer. E depois é esperar que o talento nos apanhe a fazer, a construir, a trabalhar. Acho que a esperança nos deposita numa zona de imobilidade e eu não acredito muito nisso. Acredito muito mais no fazer, em pôr o corpo em movimento. E através do corpo, aí sim, conseguires estar disponível para te transformares. É esta a lógica.
S: Há bocado estava a ler uma entrevista tua algures, em que falavas da situação em Portugal do teatro e da arte. E falavas das diferenças entre trabalhar em Portugal e noutros países, ou noutras plataformas, em coisas maiores. E dizias que as dificuldades de trabalhar cá são as nossas mais-valias porque nos tornam profissionais melhores. Agora estava a ouvir-te a falares sobre a tua infância e estava a pensar nisso. Ou seja, há quem possa ler isso e pensar “não devíamos estar a focar-nos nas dificuldades como se fossem uma coisa boa porque elas não deviam existir”, há quem possa dizer isto não é?
AJ: E até vou um bocadinho mais longe. Os nossos políticos ao lerem isso podem até ter a perspetiva de “se eles conseguem fazer com menos, damos menos”. Dentro dessa lógica, nós conseguimos reinventar-nos de facto, estamos sempre a trabalhar em défice. Dentro dessa lógica acho que somos uns heróis, temos uma massa criativa brutal. Estamos sempre, por défice, habituados a criar com dificuldade. O que não quer dizer que isso seja a nota central. O ideal seria teres de facto melhores condições porque se nós conseguimos isto – e esta devia de ser a forma dos nossos governantes lerem isto – imagina se tivéssemos mais; o que não conseguiríamos produzir. E esta é a lógica que acontece lá fora e que não existe cá. Há uma escassez latente e uma luta permanente contra orçamentos e défices. É um desinvestimento brutal e permanente. Há sempre uma forma de falar com a cultura como se nós fossemos um pouco criancinhas, somos uns subsídio-dependentes. Somos uns parasitas da sociedade e não podia estar mais em desacordo com isto. Além de ser uma obrigação que está na nossa Constituição, está escrito que é um dever e é uma responsabilidade do Estado potenciar e fornecer às pessoas, ao público, o acesso à Cultura. E aos próprios artistas, também serem livres na sua criação. Quando isto é vedado, quando isto é alvo de censura, que é isso que estamos a viver hoje também, e a palavra não é outra, tu tens de te reinventar porque a necessidade que tu tens enquanto artista de não parares é orgânico, é uma necessidade orgânica. De quereres comunicar, de quereres expandir o pensamento, de quereres interrogar as pessoas, de quereres despentear os espíritos das próprias pessoas. Isso não para. Nós estamos sempre nesta roda quase insana, de luta permanente. Se isto podia ter outras condições para funcionar ainda melhor, sem dúvida.
S: Quais são? O que é esse ‘mais’ poderia ser?
AJ: Falta um pensamento profundo sobre a cultura. Não é só sobre a cultura, sobre a saúde, sobre a educação. Não há um pensamento de raiz sobre a cultura. O que está aqui em questão são razões de fundo e, mais uma vez, de notar uma ausência de pensamento, de fundo, de tudo. De realidade das companhias, do que é que se faz, de como se processam as coisas, a própria construção artística e evolução das estruturas, o que é que elas têm feito, como, quando, quanto público, se se internacionalizaram ou não, qual o trabalho pedagógico, enfim, muitas outras coisas. Não há um levantamento de fundo das estruturas artísticas, e isto inclui as sociedades, os grupos culturais das várias aldeias, das várias vilas, dos vários municípios, porque isso são satélites absolutamente fundamentais para a fruição artística e a fruição e desenvolvimento do pensamento crítico. Imagina a importância que tem uma sociedade filarmónica na zona do Alentejo, no interior de Portugal, onde o único veículo de cultura é através dessa estrutura. Não há esse levantamento, há tantas lacunas. Em vez de nos preocuparmos, que também é importante, com o nosso património material. Mas quem cuida do nosso património material, que é por norma o que está associado a um futuro, e o futuro sim depende de um passado. Nós vimos de um passado e nós temos noção disso, temos propriedade intelectual sobre isso. Mas quem cuida das novas companhias, do novo pensamento, da oferta diversificada para o público? É disto que estamos a falar, o público fica vedado a uma oferta cultural. Há uma massificação de determinadas estruturas, que são interessantes por si, não estou a negar isso, mas cortam-se as pequenas estruturas que, por norma, têm um trabalho diferente, que têm outra visão sobre as coisas, de apresentar objetos artísticos. No fundo, falta muita coisa que se remete a um único pensamento que é: não há um projeto de cultura, não há um projeto de educação, não há um projeto de saúde, de enfim. Carece, ainda por cima com um governo de maioria absoluta. A possibilidade que tinhas aqui de alterar tanta coisa e não o fazes. Dizendo isto, acho que anda tudo a criar um fosso, é aquilo que se sente, e agora falo apenas do tecido artístico, é que há um fosso brutal de desconhecimento. Ora porque o governo pensa “deixa-me cá puxar da máquina de calcular quando se fala de cultura” ora porque os artistas dizem que os governos são sempre iguais e ninguém muda. Há um fosse de desentendimento. E nós temos de criar estas pontes. É outro ponto que também podia ser revisto e atualizado. Há muitas coisas que podiam ser feitas e, para tudo isto, faltam pessoas e comunicação.
“Eu tenho um hábito que é: quando ando de transportes públicos, vou sempre com headphones mas por norma não estou a ouvir nada. Eu gosto de reparar nesses detalhes que vão desde a comida ao livro, à paisagem, à música, a uma contemplação simples. Isto é ser punk. Porque corrompes a velocidade que te querem dar. És bombardeado diariamente com informação, mas nós podemos parar o tempo.”
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S: Falas muito em comunicação, em tudo o que li teu. E é disso que estás a falar também agora. Tem que haver um diálogo, uma comunicação, para acontecer alguma coisa. Sentes que tentaste criar um satélite com a companhia, com o teu teatro? Era um dos teus objetivos com a sua criação?
AJ: Sim, sim. Tínhamos algo a dizer que, para nós, se enquadra na nossa forma de estar, que é urgente, sobretudo para nós. E sim, há uma preocupação enorme na descentralização cultural que nós sempre tivemos, um trabalho com pedagogia, com crianças, com formações permanentes, com criação de polos culturais em zonas fora das grandes cidades. Há sempre uma preocupação em acrescentar algo àquilo que já existe. Obviamente nós somos resultado daquilo que já foi feito até hoje e, se somos o resultado, então vamos fazer melhor. Ou pelo menos tentar. E sim, a ideia era criar um satélite, sobretudo uma oferta cultural diversa, plural para o público. Não estamos aqui a reinventar ou a criar algo de novo, estamos sim com um espírito criativo diferente, a tentar dizer algo à nossa maneira e isso acrescenta algo ao tecido cultural e à nossa sociedade.
S: Sentes essa resposta ou que és uma gota no meio de um oceano? Ou as duas coisas ao mesmo tempo?
AJ: Há essa resposta, felizmente não somos uma gota. Temos várias estruturas que são várias gotas e que acreditamos que juntos podemos fazer uma coisa maior. Não diria um oceano, é muito ambicioso, mas um lago, um rio, tudo em permanente mutação. São objetos vivos e que, como objetos vivos que são, carecem de muito cuidado. Como uma planta, tens de a cuidar. É bonito vê-la crescer, mas para ela crescer tens de saber cuidar. Nessa lógica, isto é uma coisa que se trabalha diariamente.
S: Requer atenção.
AJ: Muita. Estamos a falar do futuro. E o futuro passa por formar pessoas que se interroguem, que questionem a sociedade onde estão envolvidas, o seu ecossistema. Sem este trabalho, acreditamos que o público fica sem dúvida muito mais reduzido.
S: Alguém que venha ter contigo, que queira ser ator. Há alguma coisa, digamos quase imediata, que digas à pessoa que pode fazer, ou que possa investir ou focar-se? O que seria para ti?
AJ: Não penses em ser ator, não penses em ser artista. Pensa só em viver. Era a dica ou o conselho que eu daria de uma forma imediata, porque eu acho que é tudo uma consequência. Se tens uma vida preenchida, se tens algo para dizer, é um bocado como o Christopher Walken diz, que é um ator que eu admiro: nós nascemos sozinhos e morremos sozinhos. E no meio, existe a vida e o que é que nós procuramos durante a vida? Algum tipo de ligação. E dentro desse processo de ligação, ligaste à pessoa, fazes contacto onde te revejas, num reflexo através do outro sempre. Em que tu te podes de facto reinventar ou crescer ou ligar.
S: Nós só existimos em contacto com o outro.
AJ: Sem dúvida. E nós temos isso muito presente. Nós, os artistas. Isto não é um processo individualista, não é uma ego trip. Isto é sobretudo para as outras pessoas e às vezes parece que colocam a classe artística nesses seres egoístas.
S: Também há pessoas da classe artística que são egoístas como em todo o lado.
AJ: Sim, mas eu quero acreditar que no contexto em que eu estou não estamos nesse layer. O nosso objetivo não é ficar ricos com esta profissão.
S: Senão não tinham ido para esta profissão para começar.
AJ: Exatamente. (risos) Mas é um bocadinho este marear permanente que te obriga a estar sempre em ligação e acabar, a estabelecer e a acabar, a pintar projetos e a acabar... Estás sempre a recomeçar. A coisa boa de recomeçar nesta profissão é que renovas sempre a esperança. Cada vez que começas um projeto seja de que natureza for, eu renovo a esperança. Que às vezes é difícil ter-se esperança. Com tudo o que está a acontecer no mundo agora, com o panorama não só a nível nacional, mas internacional. Com tudo o que está a acontecer a nível humanista, a nível das tecnologias versus o homem, onde é que tu ficas no meio disto tudo. A desesperança às vezes quase que ganha, mas quando começas os processos renovam.
S: É quase um ar, não é? Que entra quando há esse contacto, quando te revês no outro, quando partilhas o que pensas, quando constróis algo com outra pessoa.
AJ: E há a possibilidade de falhar, sabes? Quando tu começas, a falha surge uma vez mais como uma possível primavera.
S: Em Abril deste ano dizias que ias deixar de fazer teatro ou que não sabias se ias continuar a fazer teatro durante algum tempo. Tendo em conta que o teatro é a tua base, como é tomar uma decisão destas? Ou, entretanto, já veio um bocadinho de esperança e houve algo que mudou isso?
AJ: Tem a ver com vários processos. Tem a ver com um processo de renovação, como um animal que tem de mudar o pelo. Dentro dessa lógica, eu preciso agora de um tempo do teatro, há medida que vou envelhecendo nesta profissão. É, sem dúvida, a expressão mais exigente. Porque a tua vida, realidade e ficção, está cada vez mais misturada. Há uma linha muito, muito ténue entre uma coisa e outra. Muito exigente, quero eu dizer. E às vezes precisas de parar para ganhares distância. Um bocado como o humor. O humor surge sempre como uma espécie de mar que te recolhe para teres uma perspetiva sobre uma situação e depois vens com uma força, com uma outra perspetiva do acontecimento. E eu quero estar nesse momento agora. Quero recolher para ter outro tempo de pensamento sobre as coisas. Fazer aqui um reset, um update.
S: Já fizeste isso no passado?
AJ: Já. Acredito que todos os atores de uma forma ou de outra passam sempre por uma vontade de parar. De deixar de ser ator. Não só por tudo isto que te acabei de dizer, mas porque tens de respeitar o teu trabalho. E acho que a forma que tenho de respeitar o meu trabalho é sendo justo comigo. Ser justo às vezes é dizer: eu tenho de parar, eu não posso estar a repetir moldes, estar a cair nas mesmas coisas. E depois o toque final, a pincelada final, vem de – porque acabei agora de fazer um espetáculo de Pasolini e Pasolini para mim é assim a maior expressão que eu tenho perto da genialidade, de alguém superior, uma visão inacreditável, linda, bela, horrifica; tem tudo Pasolini – e fiz um texto que me remeteu para essa condição também. De questionamento, quase ao Ser Ou Não Ser?
Pasolini mexe-te nessas vigorações. E após ter feito este espetáculo que é a orgia onde fiz com a Beatriz Batarda e a Marina Leonardo, mas sobretudo com a Beatriz fiz 1h15 em cena. A encenação remeteu-nos para uma génese, e a génese aqui é a palavra, em conflito com o corpo. E este conflito é um despojamento total. Além de ter sido extremamente exigente, coloca-te numa posição de questionamento latente. E o próprio espetáculo ainda hoje me está na cabeça, as palavras estão-me na cabeça. Não há um dia em que não me venha um flash de uma frase, uma palavra. E isso é, lá está, acredito que como objeto de vida em construção, tenho de me questionar. Nem que isso às vezes implique parar. E essa pausa no teatro tem que ver com isso. Ganhar um distanciamento para vir com um novo fôlego. Ou não. Ou decidir que não quero fazer mais e que me revejo mais a encenar, ou a dirigir, ou a fazer cinema. O que seja.
S: Estamos a chegar ao final do ano. Não sei se é uma altura em que fazes uma reflexão. Ia-te pedir que fizesses essa reflexão deste teu ano de 2022. Tiveste alguns projetos que nunca tinhas feito, por exemplo um protagonismo numa série internacional. Houve aqui algumas primeiras vezes...
AJ: Faço. E houve, houve. Uma das coisas que eu também aprendi, faço mesmo o exercício de todos os dias agradecer alguma coisa que me aconteceu no dia. E então eu já fui fazendo essa diluição, esse rewind, de forma diária, agradecendo aquilo que eu tenho. E dentro dessa lógica, aquilo que eu realço do meu 2022 foram as pessoas que eu conheci que são absolutamente apaixonantes. Ensinaram-me muito. Foi um ano de muita produção intelectual, artística, de conhecimento. Há projetos que se destacam, ora pela sua envergadura, ora pela sua exposição. Ser pela primeira vez protagonista numa série de streaming foi absolutamente transformador. Fazer este texto do Pasolini. Ser confrontando uma vez mais com a escassez que ser artista neste país requer. Fazer uma perspetiva do que eu posso melhorar; onde é que a coisa pode ser revista. Mas, no fundo, há uma enorme gratidão, mesmo que as coisas tenham corrido mal. Há uma enorme gratidão por estar vivo. Ter essa possibilidade de errar, de ir contra a parede, de celebrar coisas incríveis e de no fundo poder estar vivo e conseguir ter a capacidade do mais básico: de tomar banho sozinho sem precisar de ajuda, ser independente a esse ponto já é uma história brutal. O que é que eu te quero dizer com isto? Que a retrospetiva 2022 se calhar resume-se a isto. Ao enaltecer da minha autonomia enquanto individuo e também poder estar com as pessoas que eu amo. Amar a minha família, as minhas filhas, passa por aí. Não quero focar isto numa perspetiva profissional. Posso dar sim, falar sobre filmes que estrearam, ou filmes que vão estrear. Posso falar de Cannes, posso falar de um filme que vai estar na seleção oficial em Roterdão, outro filme que fiz, dois filmes que fiz este ano.
S: Fizeste 3 com realizadores portugueses, não foi?
AJ: Foi Tiago Guedes, o Rodrigo Areias e Edgar Pêra. Ah, e a Margarida Gil.
S: É importante para ti manter sempre o trabalho em Portugal? Ou seja, continuar a aceitar projetos internacionais, mas também manter aqui uma base de trabalho?
AJ: Sim, sem dúvida. Eu acredito numa perspetiva de chegar lá fora através da minha língua. Gosto dessa perspetiva, gosto de manter essas relações e essas relações mantêm-se porque há uma necessidade criativa urgente de diálogo, de assuntos, de temáticas para expor, para filmar. Obviamente há uma relação íntima e emocional com esses realizadores. E tudo é potenciado através do trabalho, onde nós nos transformamos todos. Porque é uma ilha de construção profissional. É um meio acrescentado à nossa relação íntima de amizade. E, sim, interessa-me manter essa relação, interessa-me expandir aquilo que faço lá para fora e trazer para cá. E estar neste processo permanente de mutação, um bocado kafkiano.
S: Como é que sentes que os projetos vêm ter contigo? Ou de que forma é que os escolhes?
AJ: Às vezes tenho a sorte de escolher, outras vezes sou escolhido. Na perspetiva de que às vezes é sobre necessidade, nem que seja financeira. Tive uma situação profissional em que tive um projeto que era para ir para a frente e, antes de começarmos a rodar esse projeto, ele caiu. E fiquei 4 meses da minha vida a recusar outros trabalhos para estar focado aí. Nunca me tinha acontecido. Mas tive a sorte de, nessa semana, ser chamado por um colega que me disse que ia haver uma novela e se eu queria fazer participação. Fui escolhido. A ocasião fez a oportunidade. E assim foi. Mas gosto de ter a sensação de escolher aquilo que faço. Obviamente há coisas que eu não escolho. Se o Tiago Guedes me diz que quer filmar comigo, eu vou filmar com ele, não interessa o que é porque eu confio cegamente nele. Se o Sandro Aguilar, me disser que tem um filme para fazer, bora vamos. São processos que são automáticos, mas o ideal seria tu escolheres sempre. Como não há essa perspetiva ideal, às vezes tens de te adaptar.
S: O que é que escolheste para os próximos tempos? O que é que gostavas de salientar dos teus próximos projetos?
AJ: Vou encenar um espetáculo na minha companhia, que se chama My Friend Hitler, um texto de Mishima, um texto controverso logo pelo título. Onde é um mecanismo de exposição de um partido de extrema direita que por acaso podia ser de esquerda, mas é de direita – mas como é que um partido extremado se forma? Mishima expõe esse interior, esse mecanismo, essa arquitetura. Neste caso do poder do Hitler, de como ele ascendeu ao poder. Ele construiu esse texto exatamente para desmontar os mecanismos. Felizmente conseguimos manter esse projeto de pé.
S: Bastante atual, não é? E muito importante.
AJ: Sim, urgentíssimo fazer este espetáculo. Temos coprodutores que possibilitaram que este espetáculo estivesse de pé. Obrigada, coprodutores. Tenho um filme que vou rodar com o Sandro Aguilar para o ano e com a minha querida amiga e atriz que é a Isabel Abreu. Já trabalhamos muitas vezes, ela é incrível, em filmes, em curtas. Agora estamos num ponto de maturidade muito interessante. O próprio Sandro escreveu o guião e há um universo muito peculiar, que é o do Sandro, mas com uma evolução e uma maturidade da parte dele que se vai refletir no trabalho. Logo a seguir, irei filmar pela primeira vez - já tínhamos prometido isto há muitos anos - com o Ivo Ferreira e vou ser o protagonista desse filme também. Portanto, tenho coisas incríveis à minha espera. No fundo, a gratidão replica-se permanentemente. Eu acredito que, dentro da lógica de eu ser o reflexo dos outros, posso imprimir algo de interessante, de positivo, no meu dia a dia, acredito que vai haver um equilíbrio entre aquilo que eu recebo e aquilo que dou. Preocupo-me em respeitar aquilo que faço pelo próximo através de uma abertura de uma ausência de julgamento, e de uma suspensão da descrença, onde sou uma espécie de veículo de outra coisa qualquer.
S: Tens alguma crença?
AJ: Não. Tive uma educação católica, hoje em dia não. Respeito a fé de quem a tem. Acho que a fé é uma coisa independente da religião. Mas religião não. Politicamente também não, mas tudo aquilo que eu faço é religioso ou é político. Obviamente há ecos dessa educação, há uma perspetiva existencialista em que eu me revejo através de vários pensadores que me vão inspirando. Em última análise, se há alguma espécie de Deus – não querendo ser chalala – é a Natureza. Acredito que nós, como animais que somos, devemos respeitar a Natureza. Vivemos numa equação invertida em que acreditamos que a Natureza é que nos tem de contemplar a nós e é precisamente o oposto. Nesta contemplação, que também ela é religiosa, da Natureza, de uma planta que seja, há uma religião. Acredito mais nisto.
S: Ao longo da nossa conversa, reparei que disseste algumas frases de algumas pessoas que tens como referência por isso lembrei-me de te perguntar uma coisa. Se houvesse algum mantra teu ou frase com a qual ficasses célebre, qual seria?
AJ: Ui. Vou tentar dar três. Pasolini, no texto A Pocilga, onde eu fazia o Julian. O espetáculo abria com estas palavras: “que coisa imensa e curiosa é o meu amor, não te posso dizer quem amo, mas não é isso que importa”. Seria esta. Seria “Deus existe e a culpa é nossa”, uma frase da Cláudia Lucas Chéu, uma poeta e dramaturga portuguesa. E terminava com uma coisa parecida a uma espécie de lapide, em que roubaria o título de um livro que reúne uma obra completa que foi editada pela nossa Companhia e pela nossa editora que é a Guilhotina, do Manuel Cintra que infelizmente já não está entre nós e que foi um poeta único, excecional e disruptivo. Eu sou muito fã do David Bowie e ele também era. Eu roubaria o título da obra dele, com o devido respeito, para a minha lápide: manobra incompleta.
S: Há alguma coisa que queiras salientar desta experiência com a SOLO?
AJ: Tenho uma sorte do caraças. Começo por aí. Não estou mesmo a dar graxa porque não tenho personalidade nem paciência para isso. Não há argumento que possa definir um Frederico. Uma equipa, uma estrutura que ele oleou. E sobretudo o querer fazer diferente. Esse espírito que é quase de marinheiro que vai na sua nau para descobrir novos mundos, novos caminhos. É isso que esta equipa faz e eu identifico-me muito com esse espírito. Trabalhar com a SOLO é sempre um convite para uma viagem, um mergulho, para o desconhecido. Temos tudo preparado sim, mas não sabemos no que é que vai resultar. Nós gostamos dessa adrenalina, do desconhecido, do desconhecer no que vai resultar. E apoiamo-nos uns nos outros.
S: Na falha, mais uma vez.
AJ: É isso. No que surge, na surpresa. Se não abraças a falha ou o erro, boicotas a surpresa, a questão de te surpreenderes com a vida. E a SOLO tem essa dimensão muito presente, que é a de se manter sempre muito numa zona de desconforto. E às vezes é muito difícil manter esse desconforto. Mas de uma criação brutal.
“O melhor espetáculo que podemos fazer é quando alguém sai da sala. É sinal que essa pessoa, de alguma forma, neste caso de uma forma não muito positiva, se está a picar com aquilo que está a ver. Eu gosto disso. Prefiro isso à indiferença. Que muitas vezes se reflete num “Bravo!”, em que toda a gente se levanta em uníssono e, na verdade, isso é bola, é oco, é estéril. Prefiro quando se provoca uma disrupção porque a música está muito alta, porque comentas “o que é isto?” ou “não tenho paciência para isto, vou-me embora”. Prefiro isso mil vezes. É sinal que a coisa está a chegar ao outro lado. Pode ser bom ou mau, mas está a chegar.”
“Eu estou nesse modo permanente de escuta porque acho que é através da escuta que eu consigo mudar. O meu trabalho reside na mudança. A mudança para mim é crescimento, é educação, é onde tu podes parar a narrativa da tua vida, do teu trabalho, e construíres outra. Mudança e o erro também é outro pilar daquilo que eu faço. O erro é das coisas mais belas que a vida nos pode dar porque são oportunidades de crescimento, de construção.”
“Acredito que como objeto de vida em construção tenho de me questionar. Nem que isso às vezes implique parar. E essa pausa no teatro tem que ver com isso. Ganhar um distanciamento para vir com um novo fôlego. Ou não. Ou decidir que não quero fazer mais e que me revejo mais a encenar, ou a dirigir, ou a fazer cinema. O que seja.”
S: E é um desconforto propositado, mas também fomos um bocado empurrados para esse beco de desconforto porque, efetivamente, não havia nada a ser feito assim. E é difícil fazeres algo diferente daquilo a que as pessoas estão habituadas, ou que já existe. Arranjar meios para isso, manter as pessoas motivadas, fazer uma coisa com identidade.
AJ: Todas as pessoas estavam motivadas, todas as pessoas estavam com a ideia de estarem a fazer algo diferente, estão a acrescentar qualquer coisa.
S: Sim, há um propósito por trás.
AJ: E isso, de uma forma ou de outra, vai chegar aos leitores. Ora digitalmente, ora materialmente. Vão sentir essa vibração. De que há um trabalho, há um pensamento por trás. E vês a diferença quando há um pensamento por trás de um conceito. É o que está na SOLO. Tenho mesmo uma sorte do caraças de ter a oportunidade de fazer parte desta viagem e de trabalhar com estas pessoas que me ensinam e inspiram muito, inspiram muito a ver as coisas de outra perspetiva, a colocarem-me em coisas que eu nunca fiz. E, no fundo, a pôr-me na pele do estrangeiro, do outro. E a SOLO é um passaporte para o estrangeiro.
S: Sempre tiveste uma relação próxima com a Moda. Sempre foste um ator e uma personalidade acarinhada pelo meio da Moda porque, lá está, entendes essa estranheza. Foi crescendo contigo?
AJ: Foi crescendo comigo. Quando era miúdo, lembro-me de olhar para os desfiles e de ver coisas estranhas. Nunca me vou esquecer da primeira vez que vi fotos de um desfile do Alexander McQueen. É impossível ficares indiferente àquilo. Que roupas são estas? Que imagens querem criar? Há um sentido estético. Um sentido que se vai apurando. E a Moda nisso é absolutamente essencial porque é uma âncora de novos caminhos, de novas visões, novas formas de olhar a sociedade.
S: Até de criar novas imagens na cabeça das pessoas.
AJ: Até para o Teatro por exemplo. Há desfiles que são cenários inacreditáveis, são peças de teatro. São exercícios estéticos absolutamente inspiradores. No mínimo. E a Moda tem essa componente também, de nos fazer olhar para nós e reinventarmo-nos. E, sobretudo, cada vez mais, dar espaço a novos corpos.
S: Apropriar-nos do nosso corpo é uma atitude de poder gigante. Uma ação de poder.
AJ: O teu nome. O teu nome é muito importante. As pessoas tratarem-te pelo teu nome é muito importante. E a Moda, assim como as Artes, é muito viva nessa perspetiva. A Moda devolve o corpo à sociedade, tal como o Teatro e o Cinema. E coloca-nos em conflito. Em questionamento, em pensamento. E só assim é que as coisas podem, efetivamente, mudar.
S: Tu lês muito?
AJ: Leio. Bastante mesmo. Posso dizer-te que tenho sempre uma catrefada de livros comigo, ando sempre carregadíssimo. Tenho aqui o Mito e Religião na Grécia Antiga do Jean-Pierre Vernant, que eu já li em puto, mas agora voltei a ler por causa do trabalho que vou fazer. Tenho o Mito Nazi do Philippe Lacoue-Labarthe e do Jean-Luc Nancy. Tenho António Ferro, A Vertigem da Palavra. António Ferro é uma personagem superinteressante, adoraria fazer um filme sobre ele, seria uma personagem incrível para fazer em Cinema. Ele foi um ministro da propaganda no Estado Novo, responsável pela forma como nós vemos a nossa Tradição. Lembras-te daquele mapazinho que tem as da Nazaré vestem-se assim? Foi esse senhor. E não só. Foi colocado como diretor da revista Orpheu na altura, porque ele era menor. E a censura, a polícia política, não podia prendê-lo por ser menor, por isso foi ele colocado como diretor da revista. Vou saltitando. Tenho pouco tempo entre cenas, então vou pegar neste. Se tiver mais tempo, vou pegar neste.
S: Adoro os teus marcadores: uma caneta, uma fatura.
AJ: (Risos). Sim, tenho canetas, tenho folhas das árvores, tenho várias coisas, mais faturas. Vou marcando assim as coisas. Olha, outro conselho que eu poderia dar a quem quer ser ator: ler. Absolutamente determinante para a relação que tens com a palavra, porque é infinita. Aliás, a minha relação com o Teatro surge pela minha relação com a palavra. Este enamoramento que nunca acaba.
S: Desde pequeno que gostas ler?
AJ: Não, eu não gostava muito de ler. Comecei pelos Cinco, não sei quê, livros da História de Portugal, havia uma edição laranja do Círculo de Leitores. E depois comecei a ler mais. O primeiro livro que li foi As Viagens Da Minha Terra, depois li Amor de Perdição que foi o primeiro livro em que chorei no final. Depois comecei a descobrir outras coisas. Passei para os jornais e os jornais ainda hoje me acompanham. Tem que ver com o silêncio que tu adquires, porque há uma qualidade de silêncio que tu só tens a ler. E isso é precioso. Ainda ontem estava a chegar a casa e o barulho da cidade é uma coisa agressiva. Impõe-te um estado de alerta, superagressivo. Dentro dessa lógica, os livros possibilitam-me uma imersão total. E acho que, a par da música, tu não tens de perceber aquilo que o autor quis dizer exatamente, tu entendes aquilo que tiveres de entender. É sobre o que tu sentes, compreendes, dentro da tua cultura, ou o momento em que tu te encontras, se estás triste, se estás contente. É o que te toca. E acho que os livros são novamente passaportes para viagens ao interior, para o teu conhecimento, para a tua análise.
S: Conheces muita gente através dos livros.
AJ: Sem dúvida. Tem a ver com aquela máxima: para conheceres pessoas tens de conhecer pessoas. E acho que os livros são uma ótima forma de conheceres pessoas. Ou, pelo menos, de as reinventar.
S: Sempre assim em papel? Ou já experimentaste outras formas?
AJ: Já, mas falta-me qualquer coisa. Eu gosto do cheiro, gosto dos jornais por causa do cheiro. Gosto dos jornais que me deixam as mãos sujas. Eu mato os meus livros. Estes nem são um bom exemplo. Eu tenho muitos sublinhados com marcador, com páginas dobradas. Tenho muita coisa destruída, mas também com alguma impressão digital minha. E gosto do objeto. Está intimamente ligado com o gesto de pegares no livro para o leres. Há aqui, falando de religião, há uma religiosidade nestas coisas. O Teatro é um ato religioso, isto é um ato de religiosidade que vais adquirindo. É muito bonito o ato de pegares, sentares-te, o que seja, e estares assim durante um tempo a ler palavras.
S: Hoje falamos muito de mindfulness, descarregamos aplicações para ouvir, para viver o momento... Quando às vezes é tão simples, não é?
AJ: Eu tenho um hábito que é, quando ando de transportes públicos, vou sempre com headphones mas por norma não estou a ouvir nada. Eu gosto de reparar nesses detalhes que vão desde a comida ao livro, à paisagem, à música, a uma contemplação simples. Isto é ser punk. Porque corrompes o tempo e a velocidade que te querem dar. És bombardeado diariamente com informação. Repara: só temos 15 segundos de story para pôr no Instagram. Imagina o stress que isso te dá, teres de condensar tudo ali. Mas nós podemos parar o tempo. Temos essa obrigação e Pasolini dizia isso. Um jornalista uma vez perguntava-lhe: ‘não acha que os seus filmes são demasiado complicados de entender?’ E ele: eu crio objetos propositadamente difíceis porque a minha função é essa - oferecer às pessoas algo que as obrigue a sair do seu sítio, mesmo que não gostem. O que eu costumo dizer na minha Companhia é que o melhor espetáculo que podemos fazer é quando alguém sai da sala. É sinal que essa pessoa, de alguma forma, neste caso de uma forma não muito positiva, se está a picar com aquilo que está a ver. Eu gosto disso. Prefiro isso à indiferença. Que muitas vezes se reflete num “Bravo!”, em que toda a gente se levanta em uníssono e, na verdade, isso é bola, é oco, é estéril. Prefiro quando se provoca uma disrupção porque a música está muito alta, porque comentas “o que é isto?” ou “não tenho paciência para isto, vou-me embora”. Prefiro isso mil vezes. É sinal que a coisa está a chegar ao outro lado. Pode ser bom ou mau, mas está a chegar.
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Três gerações de uma família, uma marca de calçado, produção 100% nacional e uma consciência de mercado que dá para receber. Quase a celebrar 10 anos, a Citadin caminha numa direção única: a do sucesso.
Chegaram sem querer calçar os sapatos dos outros. Qual o ADN da Citadin? De que forma se diferenciam das outras propostas do universo do calçado?
Sendo a Citadin uma empresa familiar, o nosso ADN vem, em primeiro lugar, de uma cumplicidade entre os criadores que assenta em valores que não abdicamos, como a honestidade, integridade e a transparência. Na génese da Citadin estão três gerações e o contributo de cada um é fundamental para manter as ideias a fluir. O que nos diferencia é o contacto mais próximo com os clientes, a transparência com os mesmos e a procura constante pelo conforto no produto final. Os processos de aprendizagem são constantes e o nosso percurso não foi feito em subida constante. Tivemos algumas alturas em que tivemos de descer para recuperar fôlego e voltar a subir. São as dores de parto dum negócio, os altos e baixos normais que nos permitem evoluir e encontrar um equilíbrio.
Misturam conceitos que podem parecer, à partida, contraditórios: tradição e tecnologia. Onde é que estes temas se tocam na Citadin? De que maneira conseguem continuar a renovar clássicos?
Quando a tradição se junta à tecnologia dá-se um processo evolutivo e os ajustamentos são inevitáveis. A Citadin fará 10 anos no próximo ano e em 2014 a venda online de sapatos era praticamente inexistente em Portugal. Nessa altura fomos de certa forma pioneiros e permitiu-nos criar mecanismos que facilitassem a vida aos clientes nas compras online e reduzissem o receio da compra à distância. Obviamente, em 2023, essa situação já se encontra mais esbatida devido ao boom do comércio eletrónico, mas permitiu-nos desde logo estar um passo à frente no relacionamento com os clientes. A renovação de clássicos vem muito do que ouvimos de quem nos compra. São eles os mais importantes e algumas vezes são o motor para um novo modelo ou para a reestruturação de outro.
A vossa imagem fala para os dias de hoje. O que pretendem transmitir? Qual a vossa mensagem?
A nossa imagem assim como a mensagem é simples, de certa forma minimalista, para chegarmos à maior parte das pessoas. Não temos pretensões a ser os melhores, mas sim a melhorar sempre duma forma sustentada pois existe sempre espaço para essa evolução. O que sempre procuramos transmitir foi a excelência da nossa indústria de calçado em Portugal e por isso nunca iremos abdicar de produzir em Portugal. Muito importante para nós é igualmente o relacionamento com o cliente final.
Orgulham-se de apresentar calçado de qualidade, com preços acessíveis. Como o tornam possível?
Nós vivemos num permanente triângulo amoroso! As fábricas, a Citadin e o cliente final. Trabalhamos com duas fábricas no norte do país com quem temos uma relação excelente, não compramos grandes quantidades de cada vez, mas também não queremos que as fábricas percam competitividade pois são vitais para nós. Os preços que conseguimos apresentar passam por descer um pouco de margem do nosso lado para não termos produções que podem acabar em grande desperdício/excedentes no final de cada ano. A maior parte do excedente de coleções mais antigas são doados a IPSS.
Que pegada gostavam de deixar no mundo?
É importante mostrar que se consegue crescer sem produzir quantidades enorme de produto, é importante igualmente que se saiba que a grande maior parte dos sapatos é feita através dos restos da pele de outras indústrias e que é uma forma de evitar desperdício e entrar novamente na economia duma forma circular. E que a Citadin possa dar o seu pequeno contributo no produto Português e mostrar que os sapatos, mesmo clássicos, podem ser muito confortáveis!
Team
Cabelos Cláudio Pacheco
Maquilhagem Patrícia Lima
Assistentes de fotografia Pedro Sá e Vicente Sottomayor
Assistente de styling Maria Sampaio
Falcão Celso Fiuza
Retouching José Paulo Reis @Lalaland Studios
Produção Diogo Oliveira @Lalaland Studios
Vídeo Raul Sousa
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