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Entrevista por Patrícia Domingues
Fotografia por Andy Dyo
Styling por Sérgio Onze
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Um bocadinho de coragem, um bocadinho de não querer saber o que é que os outros pensam, um bocadinho de coração. A fórmula parece simples, quase mágica quando dita por Sónia, os olhos acolá, a voz aqui. É que dizem que parece sempre fácil quando é feito por alguém que entende o que está a fazer: de modelo a atriz, de atriz a poeta, de poeta a realizadora, do agora ao que ela quiser ou, na verdade, ao que a poesia quiser para ela.
SOLO: Olha, queria começar por algo que por acaso vi no outro dia. Num dia infeliz, o da morte da Adília Lopes. Estava a ver um post no Instagram sobre isso, uma notícia, e vi que tu foste lá corrigir de poetisa para poeta. Queria começar por aí, pelo poder das palavras.
Sónia Balacó: As palavras são criadoras de realidade. É com as palavras que nós definimos o mundo à nossa volta. Eu nunca gostei da palavra poetisa. Pareceu-me sempre muito pobre, tipo os homens são os poetas e as mulheres são as poetisas que estão ali a fazer as suas coisas. E parece-me ser uma expressão que existe para desirmanar. Se atleta serve para homens e para mulheres, porque é que poeta serve só para homens e as mulheres são poetisas? Não me parece fazer sentido nenhum e não estou sozinha. As mulheres da minha geração de poetas todas dizem que são poetas, ninguém se afirma como poetisa e eu creio - não quero mentir - que Sophia de Mello Breyner também dizia que era poeta. Acho que nos põe num sítio de não-igualdade. Este é um mundo pequenino, mas é importante nós, mulheres, poetas, reclamarmos esse sítio. Sim, no dicionário é, mas a gente às vezes precisa rever a língua. E essa entrada no dicionário precisa de uma atualização.
S: Tu sempre estiveste ligada à poesia desde criança, desde que escreves. Já tinhas essa noção da importância das palavras nessa altura ou foi algo que foste ganhando?
SB: Acho que a minha relação com a palavra vem de uma necessidade. Inconscientemente havia esta sensação de que a palavra é criadora de mundos e era a minha criadora de outros mundos. Também um bocadinho um escape à minha realidade, inventar outras realidades e ser feliz nessas realidades. É um sítio que eu estou a redescobrir muito na escrita neste momento, no que estou a escrever agora. Claramente um sítio de evasão, mas também de brincadeira e de felicidade absoluta. Uma coisa inconsequente, não há um objetivo neste momento de pensar ‘isto vai ser um objeto’, é só ser muito feliz na página.
S: Porque é que achas que estás a voltar agora a esse sítio da escrita meio de criança, de certa forma mais pura?
SB: Acho que me libertei talvez de algumas projeções e medos. Acho que o lançamento do Rosa, o meu segundo livro, também vem um pouco nesse sentido. Primeiro porque quando uma pessoa lança um objeto - fala-se muito do segundo álbum, o medo que os artistas, os músicos, têm de fazer um segundo álbum. E eu sinto que o Constelação foi muito bem recebido - como eu nunca pensei que viesse a ser! - e havia uma resistência em mim de fazer um objeto seguinte que fosse feito da mesma maneira, porque eu não gosto de fazer nada que eu já saiba fazer. Gosto de ir descobrir e descobrir outros processos e descobrir outra maneira de fazer. E, ao mesmo tempo, talvez por sentir esses olhos em cima de mim, foi quase como se eu os levasse nos ombros para a folha – o que nunca é bom, porque quando nós temos o leitor, ou a pessoa que vai ver o filme, ou o que for em cima de nós, nunca estamos a fazer verdade.
O Rosa vem como uma necessidade, um grito de libertação, uma necessidade de dizer ‘fodei-vos todos’ [risos] Foi super libertador dizer ‘não’ e acho que isso afetou a minha escrita, me libertou de alguma maneira também da pressão do segundo livro e relembrou-me que a folha é um sítio para ser feliz.
S: O Rosa é composto por textos escritos entre os teus 18 e os 30 anos, e eu acho que a maturidade também te dá essa essa libertação, essa coisa do ‘foda-se’.
SB: Sim, eu fiz 40 anos o ano passado, portanto sinto que há uma coisa de querer saber cada vez menos o que é que os outros pensam e de não estar a trabalhar nas projeções dos outros. Estou mais confiante no meu próprio caminho, mas também acho que é um processo que vai continuar, não está feito. É uma libertação constante e um perceber, ‘ah, é isto que eu sou agora, apetece-me ir aqui e experimentar isto’...
S: ...até porque tem sido um bocado esse o teu percurso. Já tiveste tantas experiências criativas diferentes. Parece-me que daqui a uns anos podemos estar a falar de outra Sónia completamente diferente.
SB: É verdade, eu também sinto que isso é possível, mas acho que isso é super lindo. Eu digo imensas vezes: a verdadeira obra de arte é a biografia, a maneira como estamos no mundo, como tratamos os outros, como cruzamos a vida. Eu gosto de pensar que um dia vou ser velhinha e o que é que eu posso dizer sobre a minha vida? Que fui profundamente livre, que fiz o que queria fazer. É preciso um bocadinho de coragem, é preciso um bocadinho de não querer saber o que é que os outros estão a pensar e seguir o teu coração - e o meu coração tem vontade de se expressar e essa é a raiz. É a vontade de me expressar de braço dado com a poesia, mas a maneira como as coisas se materializam pode ser objetos que eu nunca fiz e eu vou estar cá para lhes dar a mão e os ajudar a concretizarem-se.
S: Tu também costumas dizer que és poeta em tudo o que fazes. Sentes que na representação, na realização, na música até na moda, está lá?
SB: Porque é isto, o poema acontece antes da palavra na página. É o meu encontro com uma ideia, uma coisa invisível, que depois tento apanhar e trazer aqui para esta dimensão. Então, às vezes o poema, de facto, é um texto na página, mas às vezes o poema quer ser um filme ou o poema quer ser uma escultura ou o poema quer ser uma performance e eu acredito que o artista é um hermes - recebe, não está a inventar. Então o nosso trabalho é ser esse mensageiro dos deuses e ajudar os objetos, as coisas, a virem para aqui a estar ao serviço.
S: Mais uma vez é preciso não ter medo, ser quase um canal?
SB: Sim, para mim isso é muito claro. A poesia ou que a arte acontece através de nós e é muito mágico também ser um pouco espectadora do acontecimento artístico. Eu não sinto que o estou a inventar. Sinto que o estou a assistir enquanto ele vai acontecendo, que ele vem vindo como puzzle, como coisas que tu vais percebendo, claro... E depois tomas decisões, mas ele está-te sempre a guiar e a dizer, ‘não é para aí’
S: O que é o ‘não é para aí’ para ti? Como mensageira, como é que tu decides aquilo que faz sentido para ti ou não? Tendo em conta que tens projetos criados por ti de raiz e tens outros que vêm ter contigo, como a série agora da Netflix.
SB: Esta coisa de confiar na vida também é entregar-nos à vida. Esta imagem de boiarmos no rio e deixarmos o rio levar-nos. E quando aparece trabalho de atriz os projetos acabam por nos direcionar. ‘Ok, aqui durante este espaço de tempo eu sei que vou estar dedicada a isto se calhar não vou poder estar a fazer outras coisas’, mas o trabalho de atriz é também isso para mim - é estar a servir aquela existência que veio ter connosco. Mas a poesia e a escrita estão sempre a acontecer nos bastidores de tudo o resto.
S: Então como decides? É tipo intuição? É estratégia? É um mix?
SB: Eu acho que é 300% intuição, tudo na minha vida. E há coisas que talvez não sejam as mais naturais, ou aquelas para que eu penderia naturalmente, porque também sou humana, tenho preconceitos, sou teimosa qb, mas eu faço um trabalho muito grande de escutar a vida.
S: O Constelação foi lançado em 2015, ou seja, passou quase uma década. A vida estava-te a empurrar para outro livro?
SB: Sim, eu tive vários projetos de outros livros antes do Rosa que claramente não eram o seu tempo porque não acordaram, mas talvez também houvesse essa coisa de algum medo do olhar alheio. Olhar alheio é uma expressão péssima, mas desta coisa de como é que será um segundo livro, o que é que é um segundo livro. Ou seja, há uma vontade de responder à vontade dos leitores e ao mesmo tempo uma vontade de não responder, de ser radical. O Rosa é uma resposta/não resposta porque são textos, por exemplo tem muita prosa por oposição ao Constelação, se bem que também tem poesia - aliás, chama-se Rosa porque era para ser de prosa e o P caiu.
E há este diálogo entre os dois também, porque os textos são da mesma altura, só que na altura do Constelação eu não tinha força nem coragem para ser a autora daqueles textos. Os textos do Rosa são escritos naquela altura mas são publicados por uma pessoa de 40 anos que tem a coragem de dizer ‘eu também sou estas coisas’, que são coisas muito mais terrenas. Vê-se bem pelos títulos, não é? Constelação que é muito mais da dimensão onírica e etérea das coisas e Rosa é terrena, vem da terra, está aqui. Há este diálogo muito interessante entre essas duas dimensões e esses dois objetos que pertencem ao mesmo tempo - se bem que o Rosa depois tem esta autora de 40 anos que não escreveu estes textos mas os edita e rasura. Eu achei interessante o diálogo da censura, que no fundo não é, porque está lá para ser lido, mas ao mesmo tempo eu estou a dar um passo atrás. E um bocado também trazer uma empatia contigo mesma, esta coisa da aceitação também da dimensão humana e da falha que nós temos tão pouco.
Este livro, o Rosa, é uma pujança. Eu tenho 20 anos e estou a descobrir o mundo e acho que já sei o que é ser adulto e tenho estas coisas todas muito carnais para dizer, viscerais. Eu também já não sou essa pessoa, mas é muito lindo essa pessoa ter existido e eu achei importante que ela existisse publicamente.
S: Houve aqui um ‘diálogo duelo’, como o chamaste, e eu achei super interessante esta descrição.
SB: Acho que descreve este diálogo entre esta pessoa de 20 e tal anos com a pessoa de 40 e também um duelo entre as duas: qual é a versão final? No fundo estão lá as duas a coexistir. E também muito amor e respeito.
S: Entretanto, a tua bio no Instagram eu acho que tem um espectro também bastante interessante que é a Vikings Valhala, na Netflix, e Prisma, na RTP. Duas realidades distintas que coexistem. Um bastante conhecido e falado, o outro a tua primeira experiência como realizadora e também traz aqui mais uma Sónia – surpresa!
SB: Então, os Vikings foram um presente tremendo da vida e a personagem, aquela coisa da personagem que vem para nós, vários amigos meus viram a série e disseram ‘pá, esta personagem foi feita para ti’ e eu adoro pensar nisso também. Emocionei-me a primeira vez que vesti a roupa da Tamar, eu conhecia aquela mulher e foi um presente tremendo que chegou assim numa altura da minha vida que estava um bocado complicada. É uma experiência incrível fazer um projeto gigante e eu recebi mensagens de pessoas de todo o mundo e continuo a receber, ou seja, as pessoas continuam a ver e é assim um bocado sei lá, estranho é difícil de sequer de processar, mas só tenho gratidão pela maneira como fui recebida no projeto pela personagem que eu amo de paixão e pela experiência. Nós filmámos o Prisma em 2022, e eu acabei de rodar o Prisma e fui para a Croácia fazer os Vikings. Foi uma produção super mínima em que nós éramos 20 pessoas na equipa - nos dias em que estava lá toda a gente! – e passei para uma equipa que tinha centenas de pessoas. O Prisma foi um sítio muito amoroso, de uma equipa muito generosa que veio com tudo o que tinha e não tinha de coração para fazer aquela ideia e depois quando cheguei à Croácia para fazer para os Vikings Valhalla também tive muita sorte - fiquei super amiga da realizadora, fui super bem tratada por toda a gente, fiz amigos...
S: E aqui a diferença para a realizadora, como é que isso aconteceu? foi algo que por exemplo tendo essa experiência de seguida já que estás lá e estás também a reparar em outras coisas, não reparavas antes?
SB: Foi muito engraçado porque havia várias realizadoras mulheres na Croácia, porque cada realizadora faz um episódio e havia outras pessoas que realizavam, mulheres que realizavam que estavam lá também. Então houve assim um grupo de mulheres realizadoras unidas, porque até internacionalmente isso ainda é uma luta as pessoas estão a travar. então isso também foi uma coisa que potenciou as ligações, não é? Eu agora como atriz, quando chego a um set estou muito grata porque nada daquilo é responsabilidade minha, eu só vou ir fazer o meu trabalho de atriz [risos] Mas eu sei o stress em que o realizador está, sei bem como é que funciona a hierarquia num set, sei qual é o meu sítio... Se o que eu quero é que o projeto seja o melhor que possa ser, eu não vou estar a intervir no trabalho do realizador, jamais.
Agora, a experiência no Prisma acho que foi muito valiosa como realizadora, como argumentista, como produtora, mas também como atriz porque me deu uma confiança que eu sinto que não tinha antes. Não sei, é uma sensação de que por conseguir materializar um objeto de raiz deu-me uma certeza de que eu sei que eu consigo fazer... E os melhores atores são os atores mais confiantes. E também acho que se calhar comparando este momento da minha vida com o momento antes de sair o Constelação, em que eu era uma modelo ou ex-modelo que era atriz e agora passaram 10 anos e eu sou também poeta sou também realizadora, sou também argumentista, sou também produtora.
No passado eu não me sentia vista, eu sentia um bocado o preconceito ou eu projetava o preconceito, e agora eu sinto que estou num sítio que me pertence, que é quem eu sou. Podem gostar ou não gostar, mas quem eu sou é muito claro, não é? Sou esta pessoa que tem estes ímpetos artísticos e que vai sempre tentar cumpri-los quer se goste, quer não se goste, pronto, é o meu sítio e finalmente eu sinto que estou num sítio que é quem eu sou e isso dá-me confiança, claro.
S: E é engraçado porque estando de fora (e já tendo falado contigo algumas vezes) esse percurso parece todo ter sido feito de uma forma airosa, elegante, pouco forçada.
SB: Obrigada. Mas sim, é muito engraçado também porque olhando para trás eu posso dizer que com 18 anos é claro que eu sonhava um dia realizar e sonhava ser poeta, e sonhava ser atriz e fazer cinema, mas eu não sinto, ao mesmo tempo, que tenha sido um plano. A vida tem acontecido. Aliás, um dos textos do Rosa fala disso, que a única coisa que importa é cumprir-me porque eu acho que crescemos muito numa sociedade que te empurra para determinadas caixinhas e se eu ainda estou aqui e continuo a trabalhar e a fazer as coisas que eu tenho para fazer acho que a palavra é muita teimosia e resiliência. Nestes anos tive muita gente a dizer ‘ah isso que queres fazer não é fazível, aqui não se faz assim, não podes ser isso, não podes ser tudo’. E não quer dizer que não vás ao tapete e não questiones, mas é preciso teres muita certeza de que tens de cumprir-te e cumprir-te é fazer aquilo que eles estão a dizer que não.
S: Sim, e não que seja essencial, mas se calhar ter também um núcleo de pessoas próximas, semelhantes.
SB: Mas sabes que eu senti-me sempre muito desirmanada e durante os últimos dez anos tive vários momentos em que me perguntava, ‘onde é que estão os meus?’ E depois percebi, acho que finalmente, que eu estava em busca de pares que fossem aquilo que eu sou e aquilo que eu sou, sou só eu. Vais encontrando pessoas para diferentes expressões da tua existência, que conseguem caminhar contigo naquele assunto ou naquela fase, mas o meu caminho, como eu o desenho, só eu é que o vejo assim e isso também me deu alguma tranquilidade. Os ‘meus’ são várias pessoas que se complementam. A validação de que alguém está a fazer o mesmo não vem quando tu estás a inventar um caminho que não existe.
S: Qual é que é o caminho que andas a inventar agora futuramente?
SB: Bom, 2024 foi um ano muito, muito intenso, de fim de ciclos. Estrear Vikings, sair o Prisma, sair o Rosa, que foi meio uma surpresa da segunda metade do ano, que eu disse ‘ah, afinal tenho aqui um livro!’ [risos] Então, eu sinto-me super, super cansada. Eu sei que olhando para as coisas que eu faço parece que eu sou um bocadinho overachiever, não é? Mas é importante também respeitarmos o nosso corpo.
S: Há qualquer coisa aí que ainda não se pode dizer que vai acontecer.
SB: Sim, há trabalho de atriz a acontecer neste momento, que é isso que não estamos a falar ainda. Estou também a traduzir um livro que se chama Pieces of a song, da Diane di Prima, que é uma poeta, foi uma poeta beat feminina, nós conhecemos muito os homens da geração beat e não conhecemos as mulheres, porque... eram mulheres. Estou a traduzir para a editora Traça, tivemos apoio do Instituto Luso-Americano e o livro é maravilhoso, ela tornou-se imediatamente uma das minhas autoras favoritas. Ela é brilhante e é facilmente a melhor poeta beat.
S: Já conhecias o trabalho dela?
SB: Não conhecia. Mais uma coisa que vai ter comigo. Estou a ler esta mulher e sinto uma conexão profunda com aquela escrita e com as coisas que ela está a dizer. Ela é profundamente mística, como também os beats eram todos, não é? E escreve de um sítio também super visceral e de uma pobreza extrema, na fase da vida em que está. E é uma escrita feminina cheia de força, que coisa mais linda que ela trouxe para esta dimensão e estou com muita vontade de que outras pessoas possam lê-la finalmente traduzida para o português.
Bom, acho que é isso que eu estou a fazer, Patrícia, não sei se tenho mais algo a dizer. Tenho outras coisas que vão acontecer este ano, do ponto de vista criativo, mas que será só para a segunda metade do ano...
S: Nunca se sabe, daqui a duas semanas pode ser que mudes de ideias.
SB: Sim [risos] Mas agora preciso descansar e ser atriz durante um bocadinho.
Team
Maquilhagem Alex Origuella
Cabelos Victoria Kharina
Assistente de Styling Lucas Luz
Estúdio Playground
Props Kateryna Kornilova
Texto Patrícia Domingues
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