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Só não terminam as frases um do outro porque lhes acrescentam sempre pontos de interrogação. Questionadores natos, são colegas, amigos, admiradores, fontes inesgotáveis de mudança, motores para um mundo pensante onde o erro torna tudo melhor. Fica aqui também uma promessa escrita: se a atriz correr o risco de se tornar um fóssil, ele tem o dever de a avisar.
A: Quem és tu?
I: Quando tu dizes “Isabel Abreu, quem és tu?”, a primeira coisa que me vem à cabeça é algo de que eu quero fugir um bocadinho e podia estar aqui de alguma forma à procura de um “eu” mais apetecível, de um “eu” superinteressante... e a primeira coisa que me vem à cabeça é o contrário disso tudo. Porque eu acho que sou quem anda um bocadinho à procura da Isabelinha, que é uma coisa que não é muito visível. Às vezes isso pode ser duro, mas principalmente familiarmente. Porque eu sou muita luz, muita paz, muito sorriso, mas também sou muita sombra. E essa sombra é um caminho que existe, seja na adolescência, seja na vida adulta. Eu sou essa que anda à procura da minha Isabelinha, dessa menina. Porque eu tenho uma sombra muito grande que nem sempre se vê. Portanto, eu estes dois pontos, acho que sou isso. Luz e sombra.
A: É engraçado, fizeste-me lembrar uma coisa do Robin Williams, um sketch que ele tem de stand-up comedy, em que ele começa assim com a mão, tem assim a mão levantada o tempo todo, e depois sai de palco e diz que é ele em grande, porque ele nunca deixou de ser pequenino, o Robinzinho. E é muito engraçado. Achas que é importante nós, de certa forma, deixarmos essa Isabelinha, esse tal Robin Williamszinho para trás?
I: Eu não consigo. Tudo o que tenho, a origem está ali. E, portanto, não consigo deixar esse serzinho. Tenho muito essa imagem, isto é o que tu vês, isto de ser grande, mas depois tu continuas a ser o pequenino, às vezes assustado, às vezes em pânico, às vezes a querer que gostem dele. Por mais que cresças, e por mais que essa mão por exemplo cresça e que as pessoas te vejam grande, não te consegues afastar daquele ser. Há pessoas que precisam de matar esses seres pequeninos para conseguirem evoluir. Eu não consigo porque ela está lá e, muitas vezes, não consigo ver. Por isso é que digo que estou à procura desse ser. Não a consigo ver, mas eu sei que ela está lá e não consigo existir separada dela.
A: Porque é que nós não fazemos coisas que sabemos que devíamos estar a fazer?
I: Muitas vezes é pelo outro. E, muitas vezes, esse outro és tu, porque tem muito a ver com o não querer desiludir, dececionar. E não querer que as minhas escolhas desiludam e façam com que o outro deixe de me amar. Ou que possa magoar o outro. E acho que isso influencia muitas das minhas decisões. Porque há muita coisa na vida em que sinto que me levo a limites, ou em que me esforço para lá do que seria possível. Para não deixar cair os pratos todos e para os continuar a girar. E não sei se não é por este lado de não querer desiludir, de não querer magoar.
A: Será isso amor?
I: Acho que é amor. E ao mesmo tempo é desamor, porque é de uma enorme falta de amor-próprio. Se for assim muito sincera acho que tenho uma enorme falta de amor-próprio e uma enorme falta de confiança. Porque não é na desilusão, no desapontamento, não é principalmente no magoar que não existe amor. Magoares alguém e essa pessoa continuar a amar-te também tem amor.
A: O que é que tu finges saber e não sabes?
I: Cada vez finjo menos. Não tenho vergonha de nada. Eu gosto de não saber, traz-me a possibilidade de aprendizagem. Não podemos saber tudo. Há muita coisa que não sei, mas nunca fingi que não sabia. Não sei bem o que são relações, no entanto construi uma relação de anos e anos e anos com quem amo profundamente. Eu não sei bem o que é que significa uma família, não sei o que é um Natal com muita gente, não sei o que é ser pai e mãe, não sei mesmo muitas coisas. Mas nunca fingi que sabia o que isso era. Acho que até um dos grandes segredos tem sido a minha dúvida constante e mostrar que estou a aprender. Depois, mesmo no campo mais de trabalho, eu não finjo que sei alguma coisa. Porque a verdade é que quando partimos para um trabalho novo, parto sempre de um sítio meio estranho. Quando tu és sincero contigo há este lugar de não sapiência que ocupa o lugar maior. Este não saber traz-me aprendizagem e eu acho que não atiro muita areia para os olhos de ninguém a mostrar que sei alguma coisa que não sei.
A: Consegues despertar a sensação da última atuação que tiveste em palco?
I: Consigo. Quase todos os espetáculos e coisas que fiz têm sempre um momento único. E uma das coisas que sinto – e isso tem a ver com a sorte do que estou a fazer, Black Lights e a Catarina e a Beleza de Matar Fascistas – é que há uma sensação constante de que provocas reações no público. Estás a fazer um ato político, um ato revolucionário, um ato de pensamento, de resistência, de existência. E são quase sempre microexplosões, que acontecem num caso em 2h30 e no outro em 1h10. Mas estás constantemente em microexplosões corporais, em microexplosões de palavras, em microexplosões com o público.
A: Fiz-te esta pergunta porque além de seres uma atriz inacreditável e multifacetada, o teu corpo expande-se em mais alfabetos. É o que eu sinto quando te vejo. Fiz-te esta pergunta porque os dois espetáculos que tu mencionaste, um deles onde a linguagem física fala de uma forma absolutamente única, e a Catarina, estamos a falar de um texto do Tiago Rodrigues, texto teatral, pensamento do outro, e então o que me interessa, porque nunca fiz um espetáculo de dança, e interessa-me a mim enquanto ator e também como espectador do teu trabalho, perceber se existe diferença, depois de se ter experimentado uma coisa mais dita teatral, a palavra existe mais, e depois uma coisa física. Estou curioso se existe uma coisa diferente.
I: Existe um espaço muito libertador com o corpo. Não tenho ligação nenhuma a Desporto, nunca fiz nada, desacreditei sempre do meu corpo, tenho imensos complexos com o corpo e achei sempre que ele nunca me iria corresponder a rigorosamente nada, que não era um corpo interessante para fazer um objeto desses. A Dança traz algo de altamente libertador, porque não estás presa às palavras só. Estás preso a uma emoção que te guia, é essa tal microexplosão do teu corpo, e é tu deixares. Como é que sai esta energia toda do meu corpo já não tenho palavras para dizer. Agora o que eu sinto cada vez mais, quando falamos de Teatro, Cinema, Dança, o que for. A base é quase sempre a mesma: que és tu. Tu e a tua disponibilidade e a tua capacidade de te atirares sem grandes pensamentos e sem grandes teorias. Porque sinceramente o que eu senti foi esta liberdade. E é liberdade porquê? Porque estás a ensaiar durante oito horas e a transpirares verdadeiramente e aquilo é uma exaustão da repetição do movimento. E como estou a trabalhar numa outra zona do meu cérebro diferente da que eu sempre trabalhei, sabe-me bem. Chego a casa, estou extremamente estoirada, mas sabe-me bem. Tomo um banho quente, tomo vitaminas, tenho de tomar Magnésio porque fico com as articulações todas não sei quê, mas há uma sensação. E tem a ver com aquilo que tu libertas, por isso é que é bom andar, fazer desporto ou correr. Às vezes quando tu tens muito texto, fica muito cá dentro. Fica muito somatizado e pouco exteriorizado, pouco expandido. A Dança tem um bocadinho desse lado, em que parece que quando o espetáculo acaba não há coisas que ficam cá dentro, aquilo já soltou tudo através da transpiração, da exaustão e da necessidade de tomar um banho e aspirinas para no dia seguinte estares a fazer outra vez.
E tenho textos também neste espetáculo, então tenho de viajar um bocadinho entre os dois universos. E depois há outra beleza também, que é: o texto não é na minha língua. Então, parece que dá uma liberdade, estás sempre em trabalhos de libertação, porque não tens de corresponder a nada, estás sempre a trabalhar num sítio que não é o teu sítio. E como não é o teu sítio há esta disponibilidade total e absoluta para a falha e para te rires da falha às gargalhadas. A verdade é, em Teatro com o Tiago Rodrigues ou com as pessoas com quem trabalho em Cinema, há este espaço nos últimos anos sobretudo de liberdade e da falha. E isso é altamente libertador. Porque se eu encontro na Dança, não é justo que não encontres também no Cinema ou no Teatro. Todas as pessoas com quem me tenho cruzado trabalham nesta base de microexplosão e de libertação de energia, e não de só ficar ali à volta da questão e do problema, e com medo de cumprir determinadas coisas para o público... Na Dança quando partes em turnê, pelo menos com este espetáculo, não tenho ensaiado por exemplo. Ao princípio ficava “OK, não fazes espetáculo durante dois meses, um mês e pouco, e vais e chegas a um espaço e passas aquilo”. Isso para mim foi super difícil. A Dança tem um lado que tem esta responsabilização. Chegas fazes a tua partitura e entras, como um instrumento. Que é superinteressante. Não estás ali em ensaios, ensaios, ensaios, ensaios.
A: Que pergunta é que tu farias hoje à Humanidade? Uma pergunta. Seja trabalho, seja em modo Isabel.
I: O que é que andamos aqui a fazer? É assim um pensamento rápido.
A: Já agora, qual é a pergunta a que achas que a Humanidade nunca irá responder?
I: Acho que é isso que me interessa. Porque as pessoas não se estão a escutar, a Humanidade não se está a escutar e não está a perceber o que é que anda aqui a fazer. E estão altamente incapazes de sentir empatia. Quando vejo uma Extrema-Direita que ganha nos Países Baixos, quando vejo o que acabou de acontecer na Argentina e penso em tudo o está a acontecer... Isto do ponto de vista político. Depois, estava a caminho daqui e volto a ver as questões Israel-Gaza. Aliás, tinha visto uma notícia sobre a Susan Sarandon que foi expulsa da agência por causa dos pensamentos que tem manifestado. O mundo não se está a escutar, as pessoas não se estão a escutar, não podem estar a pensar. Porque se pensassem verdadeiramente em tudo o que está a acontecer não podiam assistir a crianças a dizer “mostraram-me os corpos dos meus pais. Eu estava deitada e as janelas rebentaram” e continuamos a ter um mês e meio disto. E quem diz um mês e meio diz dois anos, e quem diz dois anos diz 10 de outros sítios. O que é que andamos aqui a fazer quando fechamos a porta a pessoas que atravessam o mar, que pagam fortunas que não têm para mandar às vezes só os seus filhos na esperança de os salvar e nós depois, como países europeus, dizemos que não os vamos receber – “Não, agora vão voltar para lá.” O que é que andamos aqui a fazer? O que é que andamos aqui a fazer quando olhamos para todos os problemas climáticos e ignoramos esta realidade? O que é que andamos aqui a fazer quando liberdades foram conquistadas, e direitos foram conquistados, e nós de um momento para o outro os destruímos e voltamos a sítios que nós já sabemos o que é que são? O que é que andamos aqui a fazer neste desenvolvimento de inteligências artificiais? E onde é que está a verdadeira inteligência, que não é artificial? O que é que andamos aqui a fazer quando nos escondemos atrás de Internets e Redes Sociais e isso nos permite dizer tudo sem consequências, sem pensar naquilo que podemos provocar? Eu acho que este é um problema. Se tu pensasses verdadeiramente no que é que estás aqui a fazer, acredito que tu não farias provavelmente o que tens estado aqui a fazer. Não sei se respondi.
A: Claro que sim. Não é uma resposta fácil. Vou só acrescentar aqui. Quando penso naquilo que fazemos, penso sempre neste conceito: o que é que é a verdade? Se aplicarmos isto a tudo aquilo que está a acontecer, aí torna-se muito mais complicado.
I: O problema tem a ver com, acho eu, com os absolutismos. Porque as verdades, o que é que é a verdade absoluta? Sem querermos vamos sair desta sala, e quando sairmos daqui cada um de nós vai sair com a sua verdade sobre este momento. Mas há uma questão que é uma verdade a qual não vamos conseguir fugir, que é a partilha que existiu e este momento que partilhamos aqui. Mas depois o problema é que parece, não sei, eu às vezes penso tanto “quero tanto chegar à verdade”, mas a verdadeira verdade parece que nos foge... E eu não sei o que é que isto quer dizer… Eu acho que se calhar a verdade como a sociedade a encara não é a verdadeira verdade.
A: Podemos alugar o polígrafo.
I: Não haveria a verdadeira verdade.
A: Devia haver um polígrafo do polígrafo.
I: Devia haver um polígrafo do polígrafo. Pronto, e tu neste momento vives na mentira, que é ainda mais grave. Vives no fake. Nem é na mentira, é no artificial. Tu crias verdades e as pessoas acreditam em verdades que não são verdades.
A: Novo? Ou vintage?
I: Vintage. E novo! Depende do que estamos a falar. Eu adoro sempre coisas que trazem memórias. E o novo também pode trazer memórias, ou pode produzir. O vintage a mim traz-me sempre um conforto, mas... Ah! Eu preciso de novo, no trabalho preciso de coisas que me fazem ir. Mas não posso esquecer o vintage. Por isso são os dois. Não podes ir para o futuro se te esqueceres do passado. O passado é o que faz o futuro. O agora é futuro. Eu acho que não consigo escolher.
A: A propósito da morte do Carlos Avilez, estávamos no outro dia a falar sobre isso e da importância que é, do trabalho que foi feito por pessoas da nossa área no passado e que nos possibilita, de forma direta ou indireta, aquilo que nós temos hoje. E da responsabilidade que nós também temos de deixar de certa forma o legado, de deixar o terreno fértil.
I: É uma das minhas prestações do ponto de vista artístico. Nós em Portugal temos o caso do Carlos, do João Mota, do Luís Miguel Cintra, que são pessoas absolutamente fundamentais no percurso do Teatro, no percurso de nós como atores e atrizes, porque muitos deles nos deram formação para estarmos onde estamos. Embora às vezes não concordemos com determinadas coisas, com determinadas formas de ver, e isso também faz parte. Essa diferença, essa discussão sobre algo, faz a evolução. Nós caminhamos para polarizar, para meter em caixas, caixas de verdades – a verdade é esta, e a verdade não muda, a verdade fica aqui nesta caixa e agora nesta. Uma verdade é feita de muitas verdades. Uma história é feita de muito passado, de muito legado. E o teu “eu” é feito de imenso legado. E há às vezes uma tendência para esquecermos o legado. Não evoluis sem veres o legado e sem o perceberes, nem que seja para fazeres futuro.
A: Nessa lógica, tens medo de te tornar um fóssil de ti mesma?
I: Sim, tenho, mas espero que as pessoas que estão ao meu lado me alertem que eu me vou tornar um fóssil de mim mesma.
A: E se não te alertarem? O que é que tu podes fazer para combater isso?
I: Eu espero que me alertem. O perigo de te tornares um fóssil e de não te aperceberes é enorme. Olha é enorme quando te vês num caminho cheio de certezas absolutas, de verdades, e não te apercebes que te estás a tornar um fóssil. Tento alimentar-me o máximo possível, tento ouvir todas as vozes à minha volta, e muitas das vezes aquelas com as quais estou em completo desacordo. Mas acho que esse risco de me pôr em causa faz com que não me transforme num fóssil e evolua e não me transforme numa pedra. Mas tenho medo, tenho muito medo! Acho que isso é horrível. Essa pergunta é um bocado horrível. Porque o nível de possibilidade de isso acontecer... Eu nunca tinha pensado nessa imagem, só estou a receber agora... Mas a verdade é que tenho alguns fósseis ao pé de mim e acho que eles próprios não se aperceberam de que são uns fósseis.
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A: Tu tens uma persona tão forte, seja profissional, publicamente...
I: Mas aí estás a tocar numa coisa: persona. Aí, eu acho que não vou nunca deixar que me aconteça... Epá, e se isto acontecer, isto vai ter de ficar nesta entrevista, e alguém que me espete com esta revista e com o que eu disse. Nós, a nossa persona, pode transformar-se em algo superior a nós. Podes nem ser só tu a acreditar, podem ser os outros a acreditar...
A: Ou só se relacionarem contigo.
I: Ou só se relacionarem contigo através dessa persona. É uma linha muito ténue entre uma coisa e outra. Também podes pensar em persona pelo lado intelectual e de repente transformas-te num ser superior àquele que tu és. E agora, voltas à primeira pergunta, que é nunca te esqueceres que está ali a mão, e que tu continuas ali, a pequenina. Porque isso é não te perderes. E é muito fácil tu perderes-te. Pessoas como tu, que são também para mim um momento, são pessoas que me fazem olhar e perceber caminhos certos. Pessoas como o Sandro Aguilar, o Tiago Guedes, o Tiago Rodrigues. Estou só a dizer os últimos com quem trabalhei. Pessoas que vejo que muitas vezes escolhem o caminho das pedras, que é um caminho muito mais duro, angustiante, duro mesmo do ponto de vista económico, que não cedem a determinados facilitismos, que têm a sua persona muito bem guardada nas gavetas e sabem onde estão os seus “eus”. Quando tenho o privilégio de estar rodeada destas pessoas que não são personas, faz com que não fossilize, não fique parada na pedra. Porque ao ver isto muitas vezes ponho-me em causa – “porque é que eu estou a escolher isto?” –, podia ser mais fácil, mas ao mesmo tempo é mais próximo do que sou verdadeiramente, sem estar a criar uma coisa que não existe.
A: Eu olho para ti e imagino-te facilmente – uma coisa assim mesmo infantil – vejo-te assim à la Hollywood. Usando as palavras certas, ser bem-sucedida significa ser reconhecida por aquilo que tu fazes. Falaste do Paulo Abreu (Ubu), do Sandro Aguilar (Primeira Pessoa do Plural que vai estrear), falaste do Tiago Guedes (Diálogos Depois do Fim). São três filmes, dois deles que as pessoas já podem ver em cinema. Primeira Pessoa do Plural sou muito tendencioso, eu vi-te e disse-te pessoalmente: vi uma atriz em estado de graça, coisa que se alguma vez vi não tive a clara noção que tive quando te vi a ti a trabalhar. É com muito orgulho que digo isto, e vaidade, que é: és a primeira atriz portuguesa, segundo sei, se não estou em erro, a trabalhar com a Jatahy, que é uma diretora que eu adoro...
I: A Teresa Coutinho na L’École des maÎtres ...
A: A trabalhar profissionalmente! Este espetáculo vai andar pelo mundo, estamos a falar da alta-roda do Teatro mundial.
I: É uma grande sorte. Quer dizer, sorte. Acho que também é muito trabalho. É estares nos sítios certos, às vezes, és as pessoas conhecerem o teu trabalho. Eu tenho tido isso. Também podiam conhecer o trabalho e não querer...
A: São coisas muito diferentes. O Ubu é um objeto completamente único, eu não vi, mas hei de ver, estou muito curioso. Diálogos Depois do Fim, que é uma coisa existencialista, uma coisa onde tens a oportunidade de parar e ouvir o silêncio, como escreveste num post. Primeira Pessoa do Plural, que é uma multiplicidade, uma coisa dificílima de se fazer, de se materializar num corpo. Agora, um Hamlet com Jatahy, tendo a conceção que tem, os universos... Há tanta coisa e tu multiplicas-te por isto tudo. A pergunta é: como é que isto é possível? Como é que isto acontece? Como é que tu sentes isto a acontecer? É um mar altamente picado. São coisas tão diferentes.
I: Tu sabes como é que acontece.
A: Mas eu não sei como é que acontece para ti. As pessoas que estão a ler também não sabem e estão a conhecer-te a ti com uns focos inacreditáveis, com uma equipa incrível. De repente, como é que a pessoa que está nesta fotografia que eu estou a ver na revista e estou a adorar, como é que isto acontece? Como é que tu te reinventas? Como é que tu sobrevives? Há umas coisas muito estúpidas, uns vídeos em que eu às vezes calho lá...
I: De gatinhos.
A: Também, às vezes passo lá. Mas é um chef qualquer deitado, que quer abrir qualquer coisa e que quando mete água aquilo abre.
I: Sim! Espera, onde foi que eu vi isso? É no The Bear! Que tem uma cena genial. É uma flor linda e aquilo faz “buah” e desaparece. É mágico.
A: É isso. É magia que tu fazes?
I: É magia.
A: É ilusionismo.
I: É, muitas vezes é ilusionismo. É essa fragilidade também, é esse momento de provocação de um mágico e depois é o prazer enorme de sair das minhas zonas de conforto. E a dúvida constante e o desacreditar. A mim faz com que me ponha sempre em situações de risco e à prova. Eu própria quando estou a fazer fico espantada com os momentos de magia. E com o momento em que tocam as campainhas, e nem sei bem explicar porquê, acho que racionalizo muito pouco. Sou muito pouco razão e sou muito emoção. E dentro desta emoção, muitas vezes só sei ir. E sei ir sem saber. Só que depois sei, porque o nosso trabalho é muito feito de repetição. Eu adoro essa palavra em francês, porque ensaio é répétions. Répétions, répétions, répétions. E se há qualquer coisa que de repente se transformou num lado muito forte em mim é este mergulho em desconhecido, em repetição, que depois sei onde é que toquei e porque é que toquei. É onde eu me ponho ao dispor da matéria que tenho para fazer. E isto não é muito explicável.
A: Não é.
I: No outro dia alguém me falava de talentos, e eu dizia: “Epá, não sei bem o que é talento... É uma ligação à terra, eu sei reconhecer, eu sei ver, é uma ligação que tu não dizes que abres esta comporta e fechas aquela e aquilo acontece.” E acho que com a idade estou cada vez mais justa. A idade traz-nos – espera, não vou criar isto como verdade para toda a gente –, a idade trouxe-me uma capacidade cada vez maior de abrir estas comportas todas. E que levo para a vida e para os encontros que tenho. Porque nada do que tenho ou faço, nada destes projetos que me vão aparecendo, são algo que construí racionalmente. Mas se calhar construí-os emotivamente. Eu nunca pensei “agora vou daqui para a aqui”, nunca tive uma estratégia, nunca tive um mapa. Às vezes não me traz determinadas seguranças, porque não há um objetivo. Realmente há um grande objetivo que é trabalhar com pessoas em que acredito profundamente, que admiro profundamente, por quem eu tenho uma paixão enorme. Para mim, a admiração, a paixão e o amor andam todos um bocadinho lado a lado os três. A paixão e o amor são sempre fruto de uma grande admiração. E eu amo muito. E quando digo que eu amo, eu amo mesmo. Não tenho medo de dizer amo-te, porque eu amo verdadeiramente. E neste mundo que é também ilusão e magia também. Que é quando tu transcendes e há estrelas. E o corpo faz. Por isso é que quando eu digo que há borbulhar e há microexplosões sempre, eu não estou a mentir. É mesmo verdade. Tenho tido o privilégio e a sorte de ter estas microexplosões, coisas absolutamente grandiosas, e que vêm de um desconhecido e não de um racional. Vêm de um estado disponível. A língua por exemplo. Eu não tive formações nenhumas, estudei em escolas públicas sempre e as músicas até agora, há poucos anos, não sabia as letras. Nem percebia bem o poder das letras e tinha vergonha de falar inglês, porque as pessoas que estavam à minha volta falavam muito bem e eu não. Francês nunca falei. E de repente como é que tu consegues estar a fazer improvisações em francês – chamada a première fois –, e diziam: “mas podes fazer na língua que tu quiseres” e eu pensava: “Mas eu não vou perceber nada do que as pessoas estão a dizer à minha volta, não é?”
E essa magia que vejo surgir faz com que as coisas aconteçam. Se fores sincero há um outro lado: há muito trabalho. Já trabalhaste comigo. Os textos do Hamlet, imprimi, vou estar a reler em francês e em português. Há muito trabalho de dramaturgia, muita hora, muito pensamento, muita pestana. E nós já partilhámos residências e as residências são fruto de muito pensamento e essa parte é racional, mas muito é intuitivo e dá muito trabalho. Como é que nasce, de onde é que vem, como é que acontece? Eu não sei, mas acho que é com muito trabalho, mas sinceramente também com muita disponibilidade para o que está à tua volta. Porque às vezes não vês, às vezes não ouves, às vezes não sentes, porque não tens essa disponibilidade.
A: Achas que a falha e o erro são importantes?
I: Acho extremamente importantes. Durante muito tempo tinha medo de falhar, tinha uma enorme falta de confiança. Porque ao nível educacional, sempre tive uma coisa que é: se falhar e não corresponder àquilo que os outros queriam que fosse, isso podia ter consequências não muito agradáveis. E por isso queria sempre corresponder e não queria falhar. Tinha aquilo a que chamo síndrome de melhor aluna. Não podia falhar na escola porque tinha de corresponder a poder estar naquelas aulas em que eu estava matriculada. Depois entrei para teatro e dizem que eu não vou ser atriz e, portanto, quando me aparece a primeira oportunidade de trabalho, eu agarro-a e tenho medo de falhar, com medo de que alguém perceba que não mereço aquele sítio. Curiosamente, a falha é altamente libertadora, porque quando tu a assumes, quando tu a integras, quando lhe dás o seu espaço merecido e devido e percebes que é o grande momento criativo – a falha –, liberta-te para um sítio muito mais pleno. Começas a sentir que falhas também enquanto pessoa, enquanto mulher, enquanto mãe, enquanto cidadã. Que tens falhas. E depois artisticamente, tive a sorte de me cruzar com uma pessoa que trabalha sobre a falha, que é o Rodrigues. Porque o Tiago Rodrigues ao trazer sistematicamente, ou seja, os espetáculos terem só títulos e ao trazer e pôr na mesa duas, três folhas escritas está a trabalhar sobre a falha. Porque ele pode agarrar naquelas folhas e deitá-las fora. Está a mostrar algo que é tão embrionário, que é muito fácil deitar fora. E quando tu levas isso para o nosso trabalho acho que a falha te potencia. Porque se te vais fechar numa certeza de que está tudo certo e que aquilo que estamos a fazer está tudo certo, não há abertura, é como se tudo ficasse bloqueado. E não há abertura para novos e diferentes caminhos.
A: O que é que tu achas que nós precisamos de fazer para tornar as nossas vidas mais fáceis? Ou, neste caso, o que é que tu achas que podes fazer para tornar a tua vida mais fácil?
I: Uma das coisas tem a ver com a sinceridade e tem a ver com a pergunta que fizeste há bocado, que é escutares-te mais e, portanto, assumires-te mais naquilo que consegues ou não consegues, aquilo que queres ou não queres. E, portanto, não andar em retroativos.
A: Na mesma lógica, e não quero ser sexista ou algo do género, mas como mulher tu sentes que o teu trabalho está mais dificultado?
I: Muito mais. Tu viste este estudo sobre a paridade, que só vais conseguir daqui a não sei quantos anos... Nós já evoluímos. Neste momento, já há uma evolução numa série de campos, ainda bem, mas também há muito trabalho para conquistar. E sim essa dificuldade, sim! Falo sempre de um ponto privilegiado, mas não posso não ouvir a sociedade. Falo de um ponto privilegiado porque nunca senti verdadeiramente em mim a dificuldade por ser ou não mulher. Mas vejo-a e, portanto, não a posso ignorar. E quando eu digo mulher, digo mulher negra, digo mulher trans, digo tudo.
A: Estou a falar disto porque tu te associas a movimentos, a causas, a urgências sociais.
I: Tem a ver com a necessidade de empoderamento, de dar voz, dar espaço e dar conhecimento. E empoderar. E essas causas e esses sítios que nasceram de sensações de injustiça... E de perceber neste caso algo que tem a ver com pobreza menstrual, dignidade menstrual, que tu percebes que há uma questão que existe desde sempre e que é completamente invisível numa sociedade, seja do ponto de vista económico ou de discriminação em relação a determinadas coisas, tão simples e que eu falo muito com os alunos e alunas, as pessoas com quem nós fazemos A Menarca Vai À Escola, um projeto da Corações com Coroa (com as maravilhosas Joana Seixas, Helena Viegas, Rita Vitorino e um grupo de médicas que nos acompanha ) que conta com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa em várias freguesias, em que se vai dar aulas, cursos – não gosto muito da palavra aulas. Nós vamos explicar o que é que acontece durante o ciclo menstrual, quais são os produtos, as questões ligadas a sustentabilidade... Uma das coisas que é muito interessante é quando tu perguntas assim “sentes discriminação?”... A questão da diferença e de perda de determinadas possibilidades por menstruar. E dizem “não”. E de repente tu dizes “e se estás menstruada e tens de ir à piscina?”. Se não usares determinado tipo de recolectores, não podes ir. Ou a ginástica, ou as dores menstruais e isso ser altamente incapacitante. Ou tu teres problemas de endometriose, por exemplo. É um assunto-tabu, que não verbalizam com ninguém, têm vergonha daquilo que lhes está a acontecer e crescem e vivem presas e impossibilitadas de uma verdadeira liberdade, porque não têm conhecimento do que está a acontecer e não têm médico de família, às vezes, com quem possam falar destas questões. E há sempre uma vergonha. É muito engraçado porque a maioria das pessoas que menstruam dizem “não, não”, mas depois tu começas a falar e percebem “sim, sim, nunca tinha pensado nisso”. É o mito do normal, em que tu normalizas aquilo sem nunca falar verdadeiramente, sem pensar verdadeiramente. E isto tem a ver com o que nós andamos aqui a fazer. Às vezes se nós mudarmos as pequenas coisas que estão à nossa volta, em vez de mudarmos as grandes, conseguimos obter melhores resultados. Porque cada um de nós vai mudando no seu bairro coisas pequeninas e isso vai-se potenciar em algo maior. E eu não consigo já só escutar aquilo que faço no Teatro, no Cinema sem perceber as dificuldades que existem no mundo, sem perceber as questões que existem no mundo. E, para mim, esta tornou-se a minha luta, podiam ser quinhentas outras, mas esta tornou-se a minha luta porque como mulher que menstrua nunca me tinha apercebido por exemplo de como é discriminatório alguém não ter dinheiro para os produtos de higiene menstrual. Eu por acaso hoje posso, mas amanhã posso não poder. A minha filha hoje pode, mas amanhã pode não poder. E isto nem é sobre “hoje posso”. A questão é: como é que nós podemos? Como é que nós escolhemos e como é que tu escolhes realmente ajudar e intervir numa sociedade para que isso não seja um tabu? Para que isso não seja algo invisível e passe para algo visível. Felizmente tens muitas pessoas, e falo em Portugal especificamente, desde a Patrícia Lemos à Vânia Beliz, que fazem este trabalho há anos. E é um trabalho meio invisível porque não têm reconhecimento público, depois não conseguem chegar a determinadas pessoas. E, de repente, nós percebemos que podemos unir forças e podemos juntar-nos para ajudar. Eu digo muitas vezes pessoas que menstruam, porque há quem ainda esteja em transição e ainda continue a menstruar, e aqui ainda estás a levantar outra questão, que é um relembrar constante de algo. Socialmente quando eu dizia “homens e mulheres que menstruam” perdia a audiência, metade das pessoas já não estava a ouvir o que eu estava a dizer e estavam só a pensar “mas há homens que menstruam?”. A verdade é que por mais informação que estas pessoas tenham dentro das escolas há muita coisa que não sabem. Depois estamos a atravessar um momento muito difícil como sociedade. Trabalhar não é suficiente para a sobrevivência e nem sempre há trabalho para sobreviver. E, portanto, estás altamente fragilizado e fragilizada. Quando acresces a isto algo que vai para lá de uma opção tua e que acontece, quer tu queiras quer não, a partir de uma determinada idade e que tens 40 anos em que mensalmente aquilo te acontece – isto se não tiveres problemas, porque tens pessoas com cancros, com doenças, em que esta questão ainda é muito maior e ainda existem muitos mais gastos. E eu pergunto-me como é que o Estado, nós enquanto habitantes deste mundo, nunca vimos esta questão. Mesmo nas guerras, nas fugas, seres mulher e estares a menstruar, como é que vais fazer? Como fazes para te limpar? Onde vais buscar poder económico para? Onde vais buscar produtos? É uma micro invisibilidade altamente visível. Que pode trazer problemas horrorosos, desde septicemias, infertilidades a problemas muito graves de saúde. E nós aqui ainda vivemos – digo ainda, até ver – num país onde existe a possibilidade de ajudar.
A: O que é que tens a dizer a uma jovem atriz em Portugal? Só podes dizer uma coisa.
I: Numa palavra é difícil.
A: Havendo muitas outras, tu optas por essa para dizer...
I: Persistência.
A: O que é que tu dirias à Isabelinha hoje para não fazer? No fundo, para poupares tempo de aprendizagem. Uma coisa.
I: Não tenhas medo.
Nãoestejasmedo.
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