Vicente Gil

Vicente Gil

Entrevista por Patrícia Domingues

Fotografia por Luís Gala

Styling por Ruben Osório

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Aos 23 anos, é já difícil resumir o CV do ator do porto, português e cigano. A filmar a série Projecto Global e o filme Amanhã já não chove, fala com a SOLO. 

PATRÍCIA: Como estás?


VICENTE GIL - Sou uma pessoa feliz e inspirada, ainda que me abata com o estado do mundo. Um pouco pessimista e resiliente. E neste momento, apesar de conseguir dizer que “estou bem”, o meu estado interior grita “fod*m-se os fascistas” e “Palestina LIVRE”.

P - A maioria dos atores com quem já falei tem algum pudor em definir-se dessa forma. És ator? É assim que te vês, que te caracterizas?


VG - Sim, sou ator. Não tenho pudor nenhum em afirmá-lo, pois é a minha profissão, para a qual dediquei seis anos de formação e tenho investido todos os meus esforços para trabalhar como. 


P - Como eras em criança? Que sonhos tinhas e de que forma esse miúdo olharia para o Vicente de hoje? 


VG - Cresci a sonhar muito e sobre muita coisa. Já sonhei em ser padeiro, cozinheiro, desenhador... Mas o que sempre me ocupou mais a cabeça foi sonhar com a arte do ator, do teatro e do cinema. Olhando para o Vicente da infância, sinto que me olharia com alegria e orgulho. Em miúdo fiz bastante teatro comunitário e nunca me imaginava profissionalmente num palco ou num set de cinema, e nos últimos anos isso tem sido o meu lugar comum. Acho que o jovem Vicente ficaria orgulhoso do meu esforço e a forma como crescei à conta dos seus sonhos em parte realizados. Sonhar em ser ator não é nem nunca foi sobre o virtuosismo da beleza do trabalho e da exposição. Sonhei e escolhi ser ator por acreditar que posso acrescentar algo ao mundo e por desejar colaborar com projetos distintos e necessários, que levantem boas questões e ajudem as pessoas a refletir sobre a nossa existência neste planeta. A arte deve refletir o mundo ao nosso redor, e como ator espero ser parte desse difícil processo. 


P - Tiveste contacto desde cedo com a cultura. De que forma essa exposição precoce te moldou enquanto ser humano e profissional? 


VG - A exposição, para mim, foi e sempre será um acrescento do meu trabalho. Faz parte e existem alguns benefícios com isso, mas o que mais me interessa em ter exposição pública é a possibilidade de ter uma voz ativa e possivelmente ouvida por alguns. Tenho aprendido que o mundo é mais cruel do que imaginava e que as pessoas não olham além do seu privilégio. E por isso, é necessário que figuras públicas sejam elas mesmas denunciantes e críticas sobre o mundo, que sejam um canal de pensamento crítico e um símbolo de esperança. Não me interessa aparecer e não ter uma opinião sobre nada, e sinto que devo ao mundo contribuir um pouco que seja para o seu crescimento, nem que seja por assumir publicamente solidariedade com uma causa ou convidar as pessoas a pensar. Um pequeno gesto pode mesmo fazer a diferença na vida de uma pessoa, e uma pessoa já é todo um mundo. A cultura e o ato de fazer cultura, têm-me tornado mais justo e solidário, e por isso é que não a devemos deixar morrer. 


P - A tua mãe é parte fundamental do teu discurso. Fala-nos um pouco sobre ela. 


VG - A minha mãe chama-se Maria Gil, é uma mulher portuguesa e cigana. É atriz e ativista. Vê-la e ouvi-la é algo de raro, pois a sua inteligência é forte no discurso e na cena. Ensinou-me quase tudo o que sei e, em parte, é por causa da minha mãe que sou ator e que sou apaixonado pelo teatro e pelo cinema. É uma pessoa delicada, atenta e aguçada, daí a minha astúcia e o meu natural desejo em discutir (saudavelmente). Dos seus valores morais e sociais faço eu bandeira e sem isso não conseguiria pensar o mundo nem a arte. A minha mãe é única! 


P - “Mais do que ator sou genuinamente apaixonado por teatro”, disseste numa entrevista. O que queres dizer com isto?


VG - O teatro tem o gesto maravilhoso de congregar num espaço inúmeras pessoas. O teatro tem a capacidade de nos envolver fisicamente e especialmente numa abstração total do tempo. A beleza e a energia de uma sala de espetáculos, ou até de uma rua, onde pessoas se deslocam para assistir a uma peça é algo que está mais ligada à nossa existência, do que imaginamos. O teatro, para mim, é apaixonante porque faz do ser humano o que ele deveria ser sempre: um corpo que encontra com o outro. E nessa ideia estão várias imagens que as pessoas se têm esquecido, como a possibilidade de se juntarem em colectivo e em grupo deixarem-se confrontar com imagens e ideias para levar consigo. Quando digo essa frase, é porque mais do que ser ator, ter a possibilidade de fazer teatro, dentro ou fora de cena, é por si só um ato revolucionário e necessário. Comecei a fazer teatro com comunidades do Porto, e desde então nunca esquecerei como juntos, partilhando experiências, somos maiores. E o teatro não existe só com um corpo presente. 



P - Sempre falaste sobre as tuas origens ciganas. De que maneira os valores da tua cultura te ajudaram a ser artista e, pelo contrário, te condicionaram? 


VG - As minhas origens nunca me condicionaram a nada. Quanto muito, ao longo da minha vida, e da de todas as pessoas ciganas, o sistema político e social é que cria constrangimentos nas pessoas ciganas, a nível da integração, profissionalização, educação, saúde, etc. A minha origem, como pessoa cigana, sempre foi um motor de inspiração e afirmação de quem sou como indivíduo e artista. A minha família e os seus valores e costumes ajudaram-me sempre a ver o mundo de uma forma mais delicada e menos premeditada , o que por sua vez me faz crescer como artista. 


P - Vens de uma família ativista, és ativista. Numa atualidade com uma liberdade tão frágil, qual o teu maior propósito? Em que incide a tua mensagem?


VG - O meu desejo é que nunca sintamos a nossa liberdade como frágil. É, certamente, mais frágil para uns do que para outros, e com a direita radical vêmo-la cada vez mais comprometida. Eu não tenho necessariamente uma mensagem, tenho apenas a noção, que uso como lei para o mundo, que a minha liberdade acaba quando a do outro começa. Por isso, a ideia de liberdade tem de ser repensada cada mais como um sentido do comum e inerente a todos. Os ignorantes tendem a pensar que a liberdade é sinónimo para vale tudo, mas ainda assim existem noções às quais as pessoas não deveriam se descuidar. Às vezes, uma palavra é suficiente para impedir uma pessoa de se sentir livre, e eu acredito que a liberdade está inteiramente ligada com o sentido de empatia, o saber respeitar e recuar em relação a ideias ou discursos que impliquem a liberdade do outro. 


P - Temos um pouco a mania de arrumar as pessoas por gerações, o que te daria um selo de Gen Z, mas ao mesmo tempo já ouvimos dizer que tens algo de ‘alma velha’. Identificas-te com as características da tua geração, com os tempos que vivemos? O que te empolga e te enerva no mundo atual? 


VG - Tenho em parte uma “alma velha”, mas sou claramente um Gen Z. Apesar do estado mundo, e do ser humano estar virado do aceso, numa velocidade e ignorância total, existe ao mesmo tempo uma certa bravura na minha geração que me alegra. Talvez seja da remota com quem convivo, mas têm existe vozes e movimentos jovens que têm provado ao mundo a necessidade de nos refazermos enquanto pessoas e sociedade. Vemos isso com o crescimento das lutas anC-racistas, os movimentos ambientalistas, os movimentos Queer. O que me irrita, é que o passado e o capitalismo talharam de tal forma a nossa história e ideia de cidadão que se torna difícil romper ideias e estruturas problemáticas. E como vemos, num piscar de olhos tempo, é fácil ter cinquenta grunhos, altamente ignorantes, a discutir sobre o nosso futuro. 

Vicente Gil

Camisa e calções Luís Carvalho

Mala e sapatos Diogo Mestre

Vicente Gil

Camisa Gant

Saias Arndes

Sapatos Esc x Luis Carvalho

P - És do Porto, com muito orgulho. Qual é a tua característica mais portuense? 


VG - Com muito orgulho, MESMO! Acho que detenho uma característica muito própria dos portuenses que é ser uma pessoa afável, comunicadora e hospitalar. Para quem não é da cidade, acho que facilmente reconheço esse carinho dos portuenses em falar, saber se as pessoas estão bem, em ser prestável. 



P - O que te faz olhar para um trabalho e pensar ‘é isto’ ou ‘não é isto’? Quando olhas para a tua carreira, que direção segues? 


VG - O meu trabalho é sempre parte de um todo. Quando me digo “não é isto” é porque sinto que não está de acordo com esse todo. Às vezes, o trabalho de ator é também refém da falta de financiamento, pois sem dinheiro não há ensaios, não tempo para fazer as cenas com calma, ou pede-se que um espetáculo se estreie com pouco tempo de preparação. Mas apesar de tudo, reconheço nos artistas, diretores e produtoras portuguesas um intuito de fazer com todos os departamentos saiam a brilhar. Se “não é isto”, significa que não se investiu o devido cuidado e exigência com o trabalho, para mim o “talento” é isso. Quando funciona, e e “é isto”, deixa-se para o espectadores e olhares externos fazer o seu juízo de valor. O que não me impede de perceber quando funciona ou não, mas o trabalho artístico é sempre para o outro. 



P - Qual o maior risco profissional que já tomaste ou que estarias disposto a tomar? Como estabeleces os teus limites? 


VG - O maior risco que já tomei foi mesmo decidir ser ator. É um trabalho e uma arte vertiginosa, porque nunca sabemos o que nos vai ocupar a cabeça e a secretária, e quando não há tempo, financiamento, saltar de um projeto para outro, estou automaticamente em risco e isso exige imenso de um ator ou atriz. O meu limite não existe. Vou imaginando como estarei na década seguinte e só desejo e trabalho para que tenha ultrapassado e levado mais longe a profundidade do meu trabalho. 



P - Muitos atores descrevem uma dicotomia de conforto/desconforto inerente à profissão, quer pelos desafios da indústria, quer pelo facto de poderes estar sempre a ocupar outras peles que não a tua. Sente-la? No que te sentes mais confortável e desconfortável enquanto ator? 


VG - O maior desconforto é mesmo os desafios da indústria. Acho que qualquer intérprete gostaria de vestir menos “peles” e dedicar-se melhor a poucas, afim de expandir a sua interpretação. Mas as contas têm de ser pagas, e por isso uma pessoa divide-se, e às vezes o espaço e cuidado para a criação é difícil. O meu maior desconforto é não ensaiar para um filme ou série, ou filmar demasiadas cenas por dia, mas são coisas difíceis de combater então arranja- se mecanismos para fazer as coisas com o máximo brio possível. 


P - Descreve-nos o teu processo de criação ou de abordagem a personagens. 


VG - Não tenho um processo ou abordagem específicos. A cada projeto, o modo de trabalhar muda, tendo em conta o texto ou guião que nos apresentam. Existe uma fase de estudo sobre as obras, a dita criação da personagem onde se tenta arranjar imagens e referências para, os ensaios (em casa ou com equipa) que definem todo o tom e abordagem do meu trabalho com o filme/série/espetáculo, e o estar em cena que é onde se “encontra” verdadeiramente a personagem. E nunca deixo de parte o trabalho de dicção e articulação das palavras, movimento do corpo e procura da presença no espaço da personagem. 


P - Dos teus últimos projetos, quais as tuas maiores aprendizagens? 


VG - Aprendo sempre com os outros. Tenho tido o privilégio de trabalhar com pessoas maravilhosas que me vão ensinando tudo o sei. Acho que a maior aprendizagem que tenho tido é sobre a ética do trabalho e como acordar as obras. Acho que sozinho nunca teria tido a capacidade de abordar com cuidado e noção um guião ou um texto teatral. A escola ensina bastante, mas é no trabalho que nos vemos confrontados e com necessidade de arranjar respostas e mecanismos que nos ajudem a expressar a nossa interpretação como atores e atrizes. 


P - Tens algum mentor ou pessoas que recorras na área criativa? Tens alguém que seja um farol?


VG: Tenho sim. Sem o olhar e opinião dos meus próximos, não teria tanta consciências sobre o meu trabalho. Não as nomeio porque todas elas sabem quem são, e se não fosse a ajuda delas não teria tantas referências, perspectivas e perguntas como as que tenho. Sem elas não seria ator.

P - Parece-nos que tens uma relação próxima com a Moda ou uma sensibilidade estética acentuada. O que há nesta área que te interessa?


VG - O que interessa na moda está conectado com o gosto pelo belo. Valores incutidos pela minha mãe e um tio meu. O belo não está associado, para mim, com uma forma ou ideia específica, mas sim com um sentido do dia à dia onde se dá valor ao que nos rodeia. Aos cortes, formas, cores, pormenores, elegância, irreverência... Procurar um mundo mais belo, torna-me mais saudável e a moda, ou o vestir, é a extensão disso. Não me interessa necessariamente ser o arraso da sala, mas que eu seja uma expressão de mim mesmo, na qual me sinta confortável e próprio. Se ninguém é igual, não me interessa reproduzir as imagens dos outros.

P - Qual foi o último livro que leste, o último filme que viste, a última comida que comeste ou a última coisa que te deixou completamente intrigado e entusiasmado?


VG - Ainda não acabei, mas ando a ler a Ilíada de Homero. Os clássicos lavam a alma. A Anatomia de Uma Queda, de Justine Triet. Obrigatório! Cachupa, no Cantinho da Nonô, na Damaia. Ide lá! O que entusiasmou, e intrigou pelo lado positivo, foi a imagem de um senhor de idade a abraçar a bandeira Arco-íris na Marcha do Orgulho do Porto. 

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Equipa

Talento: Vicente Gil

Direção criativa e Fotografia: Luís Gala

Assistente de fotografia: Pedro Ferreira

Styling: Rúben Osório

Assistente de Styling: Lucas Luz

Cabelo: Igor Canedo

Maquilhagem: Diogo Ribeiro

Vídeo: Daniella Rodrigues

SOLO © 2024

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